quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

III Bienal de poesia de silves - 2008

Saúda, por mim, Abû Bakr,
os queridos lugares de Silves
e diz-me se deles a saudade
é tão grande como a minha.
(...)
Mas se retirava as vestes
grácil detalhe mostrando,
era ramo de salgueiro
que me abria o seu botão
para ostentar a flor.
Al-Mutamid - o rei poeta
poem`art A III Bienal de Poesia de Silves que, este ano, se realizará, nos dias de 25, 26 e 27 Abril p.f., começa a ter o seu lado visível. Inicia os primeiros [ se bem que ainda muito tímidos ] passos, mas inicia-os. E como nesta edição tenho a honra de participar conjuntamente com poetas amigos como Maria Azenha, Eduardo Pitta, Luís Serrano, Maria Estela Guedes, Rui Mendes, etc, a convite da querida amiga gabriela rocha martins, convido-os todos a acompanharem esta edição da Bienal, seja em Silves, seja através do Blogue inserido em baixo.
Nesta edição, será homenageado o escritor Urbano Tavares Rodrigues.
João Rasteiro

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Cesário Verde

Faz hoje 153 anos que nasceu em Lisboa um dos maiores poetas portugueses e um dos grandes nomes da história da literatura portuguesa - Cesário Verde.
Poeta falecido com apenas 31 anos, deixou-nos uma obra (O Livro de Cesário Verde, 1887) onde emerge de forma bastante original o sentimento da modernidade oitocentista, ao modo de Baudelaire e dos parnasianos, perceptível na expressão lírica acompanhada da crítica poética dos seus exageros sentimentais e dos lugares comuns da sua retórica, tendo como objectivo detectar e revelar a poesia da matéria trivial e corrente, e assentando numa elaboração formal cuidada e cheia de inovações uma poesia que veio a ser admirada, entre outros, por Fernando Pessoa.
Para Cesário Verde ver é perceber o que se esconde na realidade, é captar as impressões que as coisas lhe deixam e, por isso, percepcionar o real minuciosamente através dos sentidos e refletir essa mesma impressão que o exterior deixa no interior do sujeito poético. Ou seja, o real exterior é apreendido de forma absoluta e directo pelo mundo interior que o interpreta e recria com profunda nitidez, numa atitude de captação do real pelos sentidos, com predominância dos dados da visão: a cor, a luz, a sombra, o recorte e o movimento . É essencialmente uma poetização do real na sua plena essência.
"A sucessiva actualidade da sua poesia deve-se, por um lado, à intemporalidade própria de toda a grande poesia (se a intemporalidade da arte não é uma ilusão) e, por outro lado, à forte originalidade que a caracteriza, em parte procurada intencionalmente ou resultante de influências assimiladas de forma muito pessoal (de Baudelaire, por exemplo), noutra parte, e sobretudo, devido à própria índole poética do autor, "frio, pausado, calculista, como todas as organizações criadas [no] meio comercial", refractário à abstracção e às expansões líricas, pouco espontâneo como artista, escrevendo mesmo com dificuldade ("não sei executar o que concebo e para o meu pulso a coisa mais pesada é uma pena") e ao mesmo tempo dotado de um "gosto literário muito exigente". Tais predicados fizeram dele um "artista muito lúcido, com invulgar consciência crítica" (Jacinto do Prado Coelho - in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. II, Lisboa, 1990).
DE TARDE
Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Antologia "Palavra do mundo"

Corsino Fortes na antologia Palavra do Mundo:
O poema “Não há fonte que não beba da fronte deste homem”, de Corsino Fortes acaba de ser publicado em Havana (Cuba), numa cerimónia que teve lugar na sede da União de Escritores e Artistas de Cuba (UNEAC), como parte da antologia de poesia Palavra do Mundo, um dos mais representativos da poesia vanguardista e contemporânea.
Conforme noticia a agência noticiosa AngolaPress, que cita os organizadores, o livro, editado sob a chancela da Colecção Sul, traz obras de poetas de diversas línguas, geografias e culturas, tendências estéticas e filosóficas, dinâmicas geracionais e maneira de assumir a poesia e o acto poético.
São os porta-vozes do mais genuíno pensamento literário contemporâneo em defesa da humanidade, tais como Ernesto Cardenal (Nicarágua), Thiago de Melo (Brasil) Miguel Barnet (Cuba)), Eugeni Entushenko (Rússia), Dario Alvisio (Itália) Elena L. Popescu (Roménia), Fernando Aguiar (Portugal), Benjamím Prado (Espanha), Tito Alvarado (Chile), António Gonçalves (Angola).
Corsino Fortes nasceu em São Vicente, em 1933. Formou-se em Direito em Lisboa em 1966. Ali, após a independência de Cabo Verde em 1975, tornou-se Embaixador por certo tempo. De 2003 a 2006 foi presidente da Associação dos Escritores de Cabo Verde.
Tem vários livros publicados: “Pão & Fonema”, “Árvore & Tambor”, “Pedras de Sol” e “Substância”, reunidos na trilogia “A Cabeça Calva de Deus”. Os seus textos fazem parte de várias outras antologias em língua inglesa, brasileira, francesa, italiana, holandesa, entre outras.
De acordo com o poeta português João Rasteiro, na poesia de Corsino Fortesa insularidade de Cabo Verde aflora numa sintaxe fragmentária e em síncopes”. Nisso, continua Rasteiro, “há a expressão directa e o coloquialismo, ao lado, às vezes, de um tom alto, sempre contrastado por inflexão brutal, vigorosa”. E assim, conclui o poeta luso, Corsino Fortes consegue que nos seus poemas habitem “os arquipélagos por fora e por dentro
”.
TSF
A semana online - Cabo Verde

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

"A prostituição da palavra" II

Vejam bem / Que não há /Só gaivotas / Em terra /Quando um homem / Se põe /(A surfar!!!)...
(...)
E se houver / Uma praça / De gente / Madura / Ninguém vem / (ao poema / que não seja mar!!!)...
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actualExpresso, 16/2/2008

«Doze Naus» é um grande livro, pela construção e pela absorção de níveis da expressão e do mundo próprio de Manuel Alegre
Como membro do júri que deu o prémio a Doze Naus, confesso que tive uma outra escolha à partida. Mas abri o livro do poeta em causa e li: «Ditoso seja aquele que alcançou/ poder viver na doce companhia/ das mansas ovelhinhas que criou!» O «kitsch» das «mansas ovelhinhas» afligiu-me; mas quando vi o poeta dizer: «Hércules, uma camisa/ de chamas o consumiu», fiquei ainda mais desanimado com tão banal «camisa de chamas». Abri um outro livro deste autor e logo deparei com um «por meio destes hórridos perigos», em que a redundância dos perigos é acentuada pelo hórrido superlativo. O problema ficou resolvido naturalmente, porque o prémio só é dado a autores vivos, e esta alternativa não pertence a este grupo. Eliminado Camões, portanto ficou Manuel Alegre.
Talvez não fosse necessária esta justificação se não tivesse aparecido uma opinião, cuja legitimidade não contesto (tal como o mau gosto, a crítica é livre em Democracia), adversa ao critério desta escolha. Nada mais fácil do que abrir um livro - qualquer que ele seja, de qualquer autor, como se viu pelo exemplo de Camões (e nem preciso de acrescentar a celebérrima cacofonia do «alma minha») - para encontrar momentos a que chamaria lineares, ou simplesmente tonais, que não funcionariam se a obra se limitasse a eles, mas que se integram num todo em que se desenha uma perspectiva que os absorve, e em que esse registo tonal é subvertido ou contrariado por rupturas e sismos melódicos ou temáticos que fazem do livro um complexo de registos que vão dessa tonalidade tópica até à invenção específica de cada linguagem poética. E é isso, precisamente, que faz destas Doze Naus um grande livro, pela construção e pela absorção de níveis da expressão e do mundo próprio de Manuel Alegre que aqui encontram um perfeito jogo de equilíbrio.
Há muitos anos, ainda antes do 25 de Abril, trabalhei com Luísa Neto Jorge no argumento do filme Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos, e nunca esqueci um pormenor que o Alberto pediu para incluir sobre o monólogo do pai moribundo, quando falava do regicídio (agora tão evocado): foi a frase histórica dita pelo Buíça, de acordo com Rocha Martins, antes do ataque à carruagem da família real: «A eles!» A impressão que tenho, quando vejo alguma da actual crítica literária a autores portugueses, é a de críticos que, todas as semanas, depois de gritar «A eles!», se precipitam sobre os livros para desfechar as suas armas de pólvora seca, mas que não deixam de fazer algum ruído. Como se vê por este exemplo, são bem fracos os argumentos que tão fraca gente tem para brandir. E, ao contrário do que sucedeu com a caleche de D. Carlos, a poesia portuguesa continua a seguir o seu caminho.
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Em homenagem sincera ao nosso Zeca Afonso, os links abaixo, com 5 lindíssimas músicas – ai como elas me suavizam a alma e o demónio das palavras.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Lugares











Iniciação

A cidade dobrou-se para o rio
e o seu útero irrompeu
sobre as águas
rosa a rosa
apoiada por bilhas vivas
auríferas
sopro a sopro
prenhes.

Soube-se então que renascia violenta
entre mandíbulas alagadiças
como a inflexibilidade
da borboleta
acerba.

Em agonia precipitaram-se sobre as casas
e coseram-se com a cal
pelo coração irreconhecível da pedra.

Era uma cidade como um sismo
ininterrupto
atada às víboras do milagre
extremo
incandescente e granítico.

A cidade meteu-se toda para dentro
o sexo descoberto
transformada em réptil de hálito branco.

João Rasteiro
2008

P.S. - link anexado em 23/2/08.

http://br.youtube.com/watch?v=o-jLVq2eZBk&feature=related

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Poéticas da língua portuguesa

Wilmar Silva é hoje uma das vozes contemporâneas mais criativas da literatura mineira e brasileira.
Conheci pessoalmente o Wilmar Silva, no dia 09/02/2008, em Coimbra, uma vez que conjuntamente com o poeta Jorge Melícias, participámos nessa tarde em filmagens efectuadas pelo Wilmar, para o projecto "MINAS ENTRE OS POVOS DA MESMA LÍNGUA, ANTROPOLOGIA DE UMA POÉTICA", de autoria do próprio Wilmar Silva.
Trata-se de um projecto de pesquisa em processo de realização nos países que têm a língua portuguesa como idioma de origem oficial, aprovado pela Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, patrocinado pela Usiminas e pelo Consulado de Portugal em Belo Horizonte, entre outros.
Deste projecto/pesquisa resultará a publicação de um livro/antologia, com uma selecção de poemas, biografias e um CD Rom dos autores publicados, além de um ensaio poético híbrido, escrito pelo poeta Wilmar Silva. Esta antologia será lançada e distribuída em todos os países de língua portuguesa.
Wilmar Silva é poeta, actor e performer. Vive actualmente em Belo Horizonte. Publicou diversos livros de poesia e obteve vários prémios, nomeadamente o prémio "Jorge Lima de poesia" da União Brasileira de escritores. Integra a "Antologia da nova poesia brasileira"(Org. Olga Savary) e possui vários poemas publicados em revistas brasileiras, portuguesas, francesas e italianas. Em 2005 organizou a antologia "O achamento de Portugal".
É o curador do projecto "Terças Poéticas", que para além de trazer nomes conhecidos da poesia brasileira, dá também bastante destaque a autores não tão conhecidos do interior de Minas Gerais e de outros estados brasileiros.
Como afirma o ensaísta e poeta Márcio Almeida, "Wilmar Silva está inteirado de que pós-moderno é o que tem raiz e de que essa é a conditio da fragmentação epistêmico-poética a exigir do autor, hoje, a neuedichte – nova densidade na produção do estranhamento. É aí que o poeta esperneia para (se) dizer, donde justificar-se, na produção contemporânea, a pluralidade de diretrizes norteadoras de escolhas também múltiplas".
Pintura de Malangatana

cólera
sem dúvida essa fadiga que entardece
é mais forte do que o vento
o vento que não é da família dos chacais
e me procura com uma lente invisível
.
o vento que racha as paredes
e atravessa a pintura
.
o vento que atravessa a pintura
e diz que os decibéis
das flores que lhe oferto
estão em anomalia

TURVAÇÃO


o homem sórdido não é feito
de palha e milho — colchões de catre sim
são de palha capim e paina
madeira desenhada a nós

mas o homem sórdido é sorumbático
até o fundo vertiginoso da alma
não toma banho
apenas as mãos os olhos os pés
lava antes do sono

o homem sórdido espantou avoantes
dormiu no pomar e ficou silvestre
e não coloriu as íris de arco-
íris
.
atlas
nem one nem um nem eins nas mãos
nem two nem dois nem zwei nos pés
nem three nem três nem drei nos pés
nem four nem quatro nem vier nos pés
nem five nem cinco nem fünf nos pés
nem six nem seis nem sechs nos pés
nem seven nem sete nem sieben nos pés
nem eight nem oito nem acht nos pés
nem nine nem nove nem neun nos pés
nem ten nem dez nem zehn nos pés
cem eleven cem onze cem elf mil mãos cem mil pés
Wilmar Silva

http://www.germinaliteratura.com.br/wilmar_silva.htm
http://virtualbooks.terra.com.br/entrevistas/wilmar/wilmar1.htm

http://www.oprimeirodejaneiro.pt/?op=artigo&sec=d67d8ab4f4c10bf22aa353e27879133c&subsec=&id=78780a423398d58cab08dedde945b9df

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Dia de São Valentim

Pintura de Marcel Duchamp

As Madrugadas Esculpidas


este era o coração esculpido da chama
compartilhada no lume reaberto da espiral
profanada no gesto obsceno da lâmina
sobre a linha transparente das águas,

no útero da madrugada os espasmos
da finitude das veias que não cessam
como se de pedra negra o amor inicial.
♠♠
a construção é um espaço descoberto
o movimento lapidado das formas
difusas cicatrizes onde o amor flutua
mastigando as águas como unguento,

as crias dormem com as mãos acesas
fogueiras aprendendo a rota do voo
que reúne em si o vazio e a plenitude.
♠♠♠

no esplendor absoluto do silêncio
dobrado lume sobre lágrimas
amadurecidas veias sobre o nome
Inês que traça o seu próprio curso,

eis o crepitar acelerado do assombro
fincado ao centro o êmbolo puro
que quis decifrar o destino da sílaba.
♠♠♠♠
na noite profunda dormem fundidos
corpos uníssonos na unidade mítica
coroação descascada em uivos densos
atravessados reflexos dos ventos alísios,

o corpo sôfrego do amor sobre a terra
fechada a paisagem obstinada acocorada
na miragem das raízes a boca de Pedro.

♠♠♠♠♠

para acender outra vez aqueles olhos
de lava as águas fecundas do Mondego
sublimam a distância fronteira do golpe
cru o espectro entre as paixões da carne,

a memória álgida no excesso das artérias
filiais as bocas no odre do sangue antigo
com uma lâmina felina e subtil de vigor.
João Rasteiro

http://tw.youtube.com/watch?v=30AZF8ZKhnY
http://tw.youtube.com/watch?v=WwqPOkcXrYQ&feature=related

domingo, 10 de fevereiro de 2008

"A prostituição da palavra" I

Desde sempre se assistiu à atribuição de prémios (pelo menos os mais relevantes) na literatura e neste caso específico, na poesia portuguesa, assentes em critérios quase sempre altamente discutíveis. No entanto, neste início de um desencantado século XXI, esses critérios (mesmo existindo algumas excepções) estão a atingir patamares de uma sublime vergonha, de uma troca de favores infectos, pestilentos e inenarráveis (quer sejam devido ao arranhar dos dedos ignóbeis de algumas editoras, ou simplesmente devido a um qualquer código, adaptado provavelmente do "Código de Honra" da Máfia Siciliana, uma vez que agora se tornou prática corrente atribuir o prémio a alguém que na edição anterior foi membro do júri - por coincidência dos deuses, o anterior vencedor é agora júri) que apenas glorificarão as múmias da palavra agonizante, apenas girando e girando e girando num oco espaço - ó vates presumidos do vazio!!!
Inclusive, alguns livros premiados são tão maus, que não só esses prémios envergonham a (infelizmente) pequena comunidade da poesia, mas, em alguns casos, até os primeiros livros do laureado - ai como é(era) bom, independentemente da qualidade poético literária, lapidar a sílaba na honestidade do eco! Penso, sem querer ferir susceptibilidades, que estamos a entrar numa espiral que proporcionará um caminho muito negativo para a poesia e literatura portuguesa em geral, um caminho que apenas se poderá apelidar de desonestidade intelectual.
Como referia o caçador de proxenetas da palavra Luís Pacheco: É demais,arre diabo-berra S.Pedro,sandeu.//E mortos por dar ao rabo,lá vêm eles p'ró ceu...
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Prémio e castigo
O Prémio D. Dinis da Fundação casa de Mateus foi este ano atribuído a Manuel Alegre, pelo livro de poesia Doze Naus, por decisão de um júri constituído por Fernando Pinto do Amaral, Nuno júdice e Vasco da Graça Moura. O prémio tem prestígio, o júri é de peso, o poeta é consagrado, e colocar objecções ao seu processo de canonização passou a ser uma heresi. Mas o livro, esse, é um sério obstáculo à festa prometida e, para não perturbar tão glorioso momento da instituição literária, o melhor seria declará-lo não existente.
Tarefa simpática é, pois, a de dizer que uma das manifestações da existência do livro premiado é este poema de contemplação do “surf”: “De pé na frágil tábua/ onda a onda ele escrevia/ poesia sobre a água// Era uma escrita tão una/ de tão perfeita harmonia/ que o que ficava na espuma// não se poderia apagar;/ era a própria grafia/ do poema do mar”; ou estes versos de um “Requiem”: “Crepita a Madeira na lareira/ crepita a velha ameixieira/ seus veios são as minhas próprias veias/ vejo arder as ameixas e o verão/ crepita aquela que deu sombra e agora dá calor (…)”; ou ainda este “Adeus”: “Quando vieram dizer-me que morres-te/ eram onze da manhã e estava sol./ Não chovia no Porto como em Santiago/ há trinta anos quando mataram Allende.” Para o juízo soberano do júri também muito deve ter contado este final de uma “Breve Canção do vento oeste”: “Em cada verso há um naufrágio/ não sei de poema que não seja mar.” E quem se pela por coisas de poesia também não terá ficado indiferente ao mar alegriano, que “traz às praias do dizível/ a musica e a melancolia dos crepúsculos”.
Mar, crepúsculo, vento, aurora, melancolia, viagem, naufrágio e muito mais: Manuel Alegre vai ao arquivo dos significados “poéticos” cristalizados e constrói com eles um edifício de metáforas e símbolos vazios, bem mortos. Esta poeto-metaforização que se quer fazer passar por poesia – mas não passa de mera imitação da poesia – é um logro tão grande como a grandiloquência “kitsch” do vate presumido: “Um peso em mim: a História foi demais./ País do mar. Agora outrora./ e todos os navios a sair do cais/ para outro espaço outro crepúsculo outra aurora.”
Inclinando-se com reverência enfática, a poesia que nos oferece este livro não se satisfaz senão imaginando que é um performativo do inefável ou que é consubstancial ao mundo, como no pensamento mágico: “As aves voam por dentro/ da espingarda e da caneta/ na paisagem nunca vista.” Mas, com meios que não vão além de simbolismos de pacotilha e eufonias de salão, bem pode Manuel Alegre invocar o mar, convocar tempestades e evocar ondas que nem a mais leve brisa por aqui passa, quanto mais “um cheiro de alfazema e de salgema”. A não ser que sejamos tão supersticiosos como o júri deste prémio.
António Guerreiro ( aguerreiro@expresso.pt )
actual – Expresso, 9/2/2008
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Vergonha. Indignidade. Impotência. Ao contemplar tudo isto, advém-me uma enorme sensação de vergonha e raiva como português e poeta face a esta desonestidade, indignidade e vileza permanente. A forma como década após década, ano após ano, prémio após prémio (reafirmo, ao nível de quase todos os prémios mais importantes, porque como sempre, vão germinando excepções), este país poético e literário agiu e age, só me leva a fazer meus os versos de M.Cesariny:
Faz-me o favor...
Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.
.
É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.
.
Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.
Mário Cesariny

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

"No Centro do Arco"

Só existe o tempo único.
Só existe o deus único.
Só existe a promessa única,
e da sua chama
e das margens da página todos se incendeiam.
Só existe a página única,
o resto fica
em cinzas. Só existem
o continente único, o mar único -
entrando pelas fendas, batendo, rebentando,
correndo de lado a lado.
ROBERT DUNCAN - "Raízes e Ramos"
http://www.english.uiuc.edu/maps/poets/a_f/duncan/duncan.htm
http://epc.buffalo.edu/authors/duncan/

sábado, 2 de fevereiro de 2008

"Um beijo no centro do coração"

O Instituto Politécnico de Leiria organizou o II Encontro de Escritores de Língua Portuguesa. Subordinada ao tema “A escrita e a cidadania”, esta iniciativa que decorreu nos dias 24 e 25 de Janeiro de 2008, no auditório da Escola Superior de Tecnologia e Gestão, em Leiria pretendeu acolher autores de expressão portuguesa de várias nacionalidades e continentes, tendo contado contando com a presença de cerca de duas dezenas de prestigiados escritores, não só portugueses, mas também provenientes de países como o Brasil, São Tomé e Príncipe, Angola e Cabo Verde. Destaco entre outros, a participação de António Torrado, Vasco Graça Moura, Ana Maria Magalhães, Rui Zink, Carlos Pinto Coelho ou Nuno Júdice, e no panorama Afro-lusófono, Ana Maria Machado, Ruy Duarte de Carvalho, Olinda Beja ou Corsino Fortes
E foi precisamente com Corsino Fortes, poeta maior da língua portuguesa, e com quem estive pessoalmente pela primeira vez, que confraternizei e sobretudo aprendi. E, sobretudo, fiquei profundamente admirado, por Corsino Fortes me referir o facto de já algum tempo tentar saber quem era este humilde escriva, só pelo facto de ter tido acesso a um pequeno ensaio - "CORSINO FORTES e JOÃO CABRAL de MELO NETO ou OS ARTÍFICES da PALAVRA" - que elaborei para a cadeira de Lietraturas Africanas II, ensaio que logicamente possui determinados "defeitos" e condicionalismos inerentes ao seu objectivo, mas que de alguma forma terá agradado ao poeta, que o leu no site. (www.TRIPLOV.COM).
Corsino Fortes, esposa e João Rasteiro
Corsino Fortes nasceu na Ilha de São Vicente, em Cabo Verde, em 1933. Formou-se em Direito (em Lisboa), fez parte de alguns governos de Cabo Verde e foi embaixador em Lisboa. De 2003 a 2006, foi Presidente da Associação dos Escritores de Cabo Verde. Tem vários livros publicados, entre os quais Pão & Fonema, Árvore & Tambor e Pedras de Sol & Substância. Em 2002 é editada então a antologia (integra as 3 obras já mencionadas) A cabeça calva de deus.
Como refiro no ensaio, "CORSINO FORTES é sem sombra de dúvidas uma das maiores vozes da poesia em língua portuguesa das últimas décadas. É inegável, que a osmose e a identificação entre o Poeta e a Palavra, entre a Palavra e a consciência nacional, ou sentido de Pátria, é não só um facto, mas o facto capital da sua poesia. Para Corsino, na sua poesia, embora escrita e "cantada" em Português, todo o "material e/ou mobiliário" deverá ser, é, de identificação Cabo-Verdiana, na sua fatia universal, da sua experiência humana, da sua coexistência, do seu conteúdo e podendo-se inclusive afirmar, da sua semântica".
Por isso, reafirmo, de que "é nesse contexto que o primeiro livro, Pão & Fonema, da trilogia A cabeça calva de Deus, que incorpora também Árvore & Tambor e Pedras de Sol & Substância, procura de forma emblemática e até de forma telúrica, expressar essa luta titânica de afirmação do homem cabo-verdiano, entre a secura do céu e a cabeça calva da Ilha".
A Cabeça calva de Deus
apresenta-se-nos como uma trilogia fundacional e épica da história do país, e que nos revela com o último livro, fundamentalmente, a vertente arqueológica e cultural, ao executar nos três cantos a substância solar da criatividade cabo-verdiana, nas suas múltiplas vertentes, quer seja ao nível musical, pictórica, literária, política, etc, que ductilizam a dureza mineral das ilhas no paciente requebro nostálgico da morna, na ordem compassada do rondó, ou no ritmo agitado e harmónico da antiga mazurca ou do funaná. (www.TRIPLOV.COM).
"A sua poesia é assim, uma poesia fundacional e da identidade, condensando o universo Cabo-Verdiano, configurado num percurso que vai da anunciação da libertação do país(primeira fase), passando pela sua exaltação(segunda fase) e acabando na sua mitificação". (www.TRIPLOV.COM).(...)
Da antologia, A Cabeça calva de deus, três poemas exemplificativos, não só do que afirmei no ensaio referido, mas e essencialmente o espelho de que Corsino Fortes, que nutre um admiração profunda por outros dois grandes da poesia em língua portuguesa, Cesário Verde e João Cabral de Melo Neto, é o artíficie que trabalha a palavra como o moldador do fogo, é sem qualquer dúvida um dos poetas mais poderosos no trabalho da linguagem poética em língua portuguesa. O poeta em diálogo e interacção perante o mundo (ou o “seu mundo”), perante a palavra, perante o “poder da palavra e da linguagem”, sempre com um objectivo essencial e permanente: FAZER!

A cabana oca de vocábulos
I
Agosto arranca as âncoras do deserto
Depondo-as
....................................Às portas do povoado
Setembro cresce ossos & ventre
E da barriga de Outubro
................................Ouvia-se
O crocitar das sementes da erosão
Aqueles que sem embargos do sétimo dia
Partem do umbigo das três ribeiras
Trazem no enlaço dos destinos
A cana-de-açúcar como oxiúros
Quem não ama? os navios loucos da minha aldeia
Abalroam na planura! nos baixios
..................................Os casebres da vizinhança
À procura de mastro & oceano no olho das salinas
De Boca a Barlavento I
Esta
.........a minha mão de milho & marulho
Este
.........o sól a gema E não
.........o esboroar do osso na bigorna
.....................................................E embora
O deserto abocanhe a minha carne de homem
E caranguejos devorem
..........................esta mão de semear
Há sempre
Pela artéria do meu sangue que.g
......................................o
......................................t
......................................e
......................................j
......................................a
.............................De comarca em comarca
A árvore E o arbusto
Que arrastam
As vogais e os ditongos
...................para dentro das violas
ILHA
Sol & semente: raiz & relâmpago
Tambor de som
Que floresce
A cabeça calva de Deus.
Corsino Fortes