domingo, 31 de maio de 2009

A faísca dos corpos

A Cosmorama publicou recentemente quase toda a obra poética de Jorge Melícias compilada num interessante volume cognominado "disrupção". Para além de incluir todos os livros desde "iniciação ao remorso" (1998), acresce ainda o inédito - "agma", onde Melícias intenta quase obsessivamente numa busca pela enunciação e representação em perfeito estado de contenção, que permita ser possível transpor toda a potência, toda a energia e violência (palavras-ícones da sua poesia) latentes no universo para as categorias da linguagem e desse modo ambicionar operar na consciência dos corpos, essa profunda e maravilhosa devastação física que é/será o acto de destruição/transmutação da matéria ou lava arrasadora, mas simultaneamente renovadora do sopro. O sopro da poesia, da vida, da linguagem em sua disrupção.
A poesia de Melícias como refere Luís Adriano Carlos, é possuidora de "características quase sem paralelo na sua geração: delicadeza analítica, consciência rítmica, identidade de tom, limpidez de dicção e intensidade figurativa, exercidas numa base mínima de materiais e instrumentos". Em Melícias, julgo podermos moldarmo-nos a uma poesia de profunda tensão, através de uma imagética pujante que pode ser compreendida como um brutal confronto com o cosmos e às crenças inquestionáveis dos valores representativos deste (ou destes) mundo(s). Poesia do “horror” e da “violência”, é um registo da experiência e essencialmente da experiência da linguagem. Brian Strang defende ser esta uma poesia que move o leitor em direcção ao impensável, arrastando-o para o seu interior, para o seu epicentro, para um mundo dado ao estímulo e à imaginação. Assim, estamos sem dúvida perante uma poesia que perturba e obriga quase sempre a reagir. Do inédito "agma" e incluído nesta antologia:
1.
Sobre a imposição dos abismos
encimarei os gárrulos.
.
Erguer-me-ei das jugulares
como a pura dicção do medo.
2.
Descerei das canas
para a rasura da redenção.
.
No dorso o relâmpago
como uma carena blasfémica.
.
E um amor profundo pela impiedade.
3.
Caminharei entre os homens
com um punção virado ao medo.
.
As meninges
recrudescendo nas navalhas
como um apostema.
.
Todo o metal sitiado
pela injunção das ínguas.
...........................Jorge Melícias
.......................................................Mão Morta - Gnoma

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Lugares III

...........................................VAN GOGH
Mil luas passaram, mil sóis procriaram, mil amantes se imaginaram, mil jogos inocentes se perpetuaram, mil desejos se refrearam, mil vozes se escutaram e agora as tuas memórias cíclicas, talvez sonhadas ou inventadas, não conseguem suportar o peso do mundo, o simples peso de uma aldeia que respira abruptamente em metamorfoses, enquanto a terra se afasta e o temporal inunda de seiva a selvagem ternura dos animais cosidos ao corpo da terra. Uma arquitectura de lugar, um espaço originário dos plantadores de amieiros. O céu é um pássaro descomunal envolto em chamas sobre as vozes dos mortos, sobre os livros onde se aprisiona a formosura das palavras, como se fosse possível guardar a transparência do júbilo.
Desde as remotas tardes das chuvas que não consigo enumerar os desejos, que exercem com tão grande rigor o domínio das suas formas.
...............................................................João Rasteiro
In, O Búzio de Istambul - Palimage, 2008

domingo, 24 de maio de 2009

O(s) Errante(s)

Joseph Brodsky nasceu em 25 de Maio de 1940 em Leningrado - Rússia. Começou a publicar poesia em 1958, essencialmente em revistas clandestinas. Logicamente foi perseguido e preso na década de 60. Acabou condenado a um campo de trabalho no norte da Rússia. Mais tarde foi expulso da Rússia em 1972, passando a morar nos Estados Unidos onde se veio a naturalizar cidadão norte-americano. Aí, começou por traduzir a sua poesia para o inglês e a escrever essencialmente nessa língua. Em 1987, obteve o Prêmio Nobel de Literatura. Morreu em Nova York, em 1996, com 56 anos, sem nunca mais ter voltado ao seu país natal, onde a sua extraordinária obra só veio a ser publicada em grande escala, após a derrocada da União Soviética, em 1991. Actualmente encontra-se sepultado no cemitério da ilha de San Michelle, em Veneza, Itália, junto de outros dois russos ilustres, Diaghliev e Stravinsky.
Tendo sempre predominado na sua poesia uma "estética de vida", onde coexistem os assuntos do tempo (a voz do futuro) e do espaço (o eco da cidade), da dignidade e da política, da honra e do orgulho, do amor e da morte. As metáforas em Brodsky, como refere Carlos Leite, seu tradutor para o português, "geralmente não são precisas em termos visuais, mas improváveis, exageradas, implausíveis mesmo. Decorrem mais da persistência do pensamento, da dificuldade de pensar, do que do simples olhar, fotográfico ou contemplativo.” É sem dúvida um dos grandes poetas da segunda metade do século XX, que continua a merecer ser redescoberto.
M.B.

Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.
.
Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro~
e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota.
.
Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.
.
Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
.
Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.
..........................................................Joseph Brodsky
In "Paisagem com Inundação”, traduzido do russo por Carlos Leite

http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/NLJoBrod.html
http://revistaliterariaazularte.blogspot.com/2008/01/joseph-brodskypoesa-revista-arquitrave.html
http://poemaseningles.blogspot.com/2003/04/joseph-brodsky.html
http://www.mgrande.com/weblog/index.php/partosdepandora/comments/seria_hoje_dia_do_seu_aniversario/

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Espaços

A morte de Sócrates
Do livro da Contrição dos Mortos, dos Sopros IV

Preparou a construção com os gânglios da morte
Para ser sulco na coroa aberta da terra e renascer

Preparou a construção com os gânglios da morte
Para ser a dolorosa geometria e propagar a chama

Preparou a construção com os gânglios da morte
Porque era reincidência e o coração dos animais

Preparou a construção com os gânglios da morte
Porque tinha sede e caçava pelo olfacto das cobras

Preparou o leito da caça com os gânglios da morte

Para ser ventre da morte e a morte em suas flores
A palavra exaltada em suas escoras a florir e a gerar

Preparou a morte a construção fecunda do corpo nu.
.....................................................João Rasteiro

sábado, 16 de maio de 2009

Cânticos da terra

António Salvado, eu e Pedro Salvado
Acaba de ser editado o mais recente livro do poeta António Salvado - "ODES".
O livro agora editado é uma edição de luxo da Caixotim, integrado na série "Da palavra o fruto", sendo de realçar que o próprio nome da série é da autoria de António Salvado. Na obra emerge a pintura de Raul Costa Camelo, aqui num fraterno e excelente diálogo com a poesia do poeta, englovando seis reproduções de pinturas inéditas. Pela poesia que leu, editou e criou, pelo contributo dado à poesia portuguesa (como já vão longe os anos de convívio e criação com Herberto Helder e a revista "Folhas de Poesia"), com mais de 50 anos de vida literária, António Salvado, talvez Castelo Branco seja muito distante(!?!), já mereceria algumas distinções que tantos, ou alguns por aí já granjearam. Pelo menos "nuestros hermanos" e a mágica Salamanca não o deixa(ra)m passar "despercebido".
É uma longa obra onde a energia poética é um valor intrínseco à sua criatividade, uma obra marcada e guiada por um notável equilíbrio que lhe grangeou, pelo menos, um lugar de destaque na sua geração.
Embora se possa afirmar existir na sua obra uma determinada preponderância por um tom lírico, há na poesia de António Salvado uma "reiterada prática de composição que consiste em desmontar as palavras para que, a partir dos inesperados resultados, possa reconstruir um mundo imaginário, que poderíamos chamar de “o seu mundo ou universo poético”, como afirma Majela Colares.
Em baixo um poema de ODES:

Nunca regresso ao ponto de partida,
quando me leva como eremita
a solidão do dia em que viajo,
quando nem horizontes desordenam
com seus fechados véus
a vontade afincada de transpor
as linhas clandestinas.
E porque voltaria? Trabalhoso
seria descobrir
de novo a senda aberta ao retornar,
com poeiras e pedras, sobressaltos,
em toda a dimensão da revoada.
O ponto de partida
diluiu-se aliás no pesadelo
de noites infindáveis, sem contorno,
sem astros pelo céu a tilintarem
e sem segurança do romper
da manhã desejada.
Companheira leal, a solidão
parte sempre comigo
até onde a distância não existe.
.............................António Salvado



http://bibliotecamunicipalcastelobranco.blog.com/4805119/
http://www.urbi.ubi.pt/_urbi/pagina.php?codigo=5874
http://memoriarecenteeantiga.blogspot.com/2009/04/um-livro.html http://antoniosalvado.blogspot.com/

http://www.citador.pt/poemas.php?poemas=Antonio_Salvado&op=7&author=21251


quarta-feira, 13 de maio de 2009

Linguagen(s)

TIRANIA
.
Nunca se aprisionam as súplicas
enquanto súplicas, mas apenas
aprisionamos uma voz noutra
voz, ou mesmo dentro de outra
voz. O espaço sangra rubro como
amoras. Do mesmo modo, nunca
lemos o poema enquanto poema,
mas apenas lemos (n)um poema
outro poema, ou mesmo dentro
de outro poema – inteiro, exposto.
E há a fábula das horas obscuras
com uma terrível doçura de garras
embrionárias - borboletas de voz.
.
A tirania é a agonia do verbo - mapa
que inclina insane a cegueira das flores.
.........................................João Rasteiro

domingo, 10 de maio de 2009

PAISAGENS

O grupo de teatro de Coimbra, A Escola da Noite, acolhe na próxima quinta-feira, dia 14 de Maio, pelas 18h00, a apresentação do livro de poesia Terra e Sangue, de Miriam Reyes, editado pela Cosmorama. Miriam Reyes nasceu em Ourense (Espanha), em 1974. Publicou “Espejo negro” (2001), “Bella durmiente” (2004) e “Desalojos” (2008). A sua poesia está traduzida para italiano e português.
O livro agora editado reúne os dois primeiros títulos, com traduções de Jorge Melícias e Pedro Sena-Lino, respectivamente. A sessão contará com a presença da autora e de Fernando de Castro Branco, que fará a apresentação do livro.
Miriam Reyes, intima, na sua escrita poética, uma densidade carnal, física, orgânica, com uma crueza, por vezes quase no limite da barbaridade, por vezes profundamente nos limites da ironia, da raiva, do íntimo despojamento. É uma poesia que dói e faz doer, é uma poesia de fêmea, mas não no sentido femininista, é essencialmente, no sentido animalesco de mulher em todo o seu esplendor. Poesia sem dúvida que merece profunda atenção. Do seu livro "Espelho negro", com tradução do poeta Jorge Melícias, o poema 6:


6.
Amo este homem misógino.
Desejo o seu sexo descarado que passeia de cá para lá
que entra onde como e quando deseja
vomita seu ódio em mim e parte.
Eu, maravilhosa artesã,
faço do seu asco a minha melhor criação:
uma réplica sua melhorada.
Do vómito incubado no mais repugnante dos seres
nascerá a criatura que o iguale em força
e seja capaz de o destruir por inveja
como eu não pude por amor.
.................................Miriam Reyes

http://miriamreyes.com/

http://cosmorama-edicoes.blogspot.com/

http://weblog.aescoladanoite.pt/

quarta-feira, 6 de maio de 2009

"Novas oportunidades"

Além as ilhas passam – são os apocalipses
.
Além as ilhas passam - são os apocalipses
as patas queimadas desabrochando
renovadas de pele
e logo regressarão fulgurantes
alastrando pelas águas inteiras
e infundidas
entre corpo e lugar, as vagas
da febre. A garganta escoada pelo fôlego
dos abismos
em opulência de sonho
de palavra nas hastes entregue ao seu silêncio
de verbo obscuro.
.
.
Além passam as ilhas como morcegos
de quem se teme o amor
e no entanto nas ondas da língua
não se teme o bafo mortal de seu carnívoro beijo
onde pulsam as guelras. O espanto ainda
projecta o fulgor inesperado do poema
até ao limite dos corações acesos.
.......................................João Rasteiro
...........Frankie Goes To Hollywood - "The Power of Love"

domingo, 3 de maio de 2009

Dia da MÃE

......................."Madona" - Edvard Munch

Tenho Saudades do Calor ó Mãe
.
Tenho saudades do calor ó mãe que me penteias
Ó mãe que me cortas o cabelo — o meu cabelo
Adorna-te muito mais do que os anéis
.
Dá-me um pouco do teu corpo como herança
Uma porção do teu corpo glorioso — não o que já tenho —
O que em ti já contempla o que os santos vêem nos céus
Dá-me o pão do céu porque morro
Faminto, morro à míngua do alto
.
Tenho saudades dos caminhos quando me deixas
Em casa. Padeço tanto
Penso tanto
Canto tão alto quando calculo os corpos celestes
.
Ó infinita ó infinita mãe.
......................Daniel Faria, in "Dos Líquidos"
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Um Poema meu - "A dança das mães":