Ainda continuando com as referências ao meu novo livro, DIACRÍTICO, publicado pela Labirinto, e que será lançado em Janeiro, na Casa Municipal da Cultura de Coimbra, coloco aqui hoje o prefácio, que tive o prazer e a honra de obter, do poeta Albano Martins, e que ele intitulou: "Reduzir ao Humano o Divino".
Toren van Babel Groot, Pieter Bruegel
REDUZIR AO HUMANO O DIVINO
Já o sabíamos: a poesia é, por definição, um acto criativo, e isso mesmo nos assegura o substantivo grego poiesis, que ao verbo poiein – "fazer", "criar" – foi buscar a raiz e a substância. É de criação que fala – que trata – o poema Diacrítico, de João Rasteiro. A diversos níveis, aliás. Como quando, por exemplo, ex contrario do que ensinam as gramáticas, o discurso começa com um ponto final, isto é, antes e não depois de encerrado o período. Como se, por desnecessário ou inútil, algo tivesse sido elidido, rasurado na página. Ou como se algo estivesse subentendido e o seu entendimento fosse confiado à sensibilidade e inteligência do leitor. Como suplemento ou, antes, como suprimento. Criação, também, pelas metamorfoses operadas no tecido verbal que subjaz à construção do poema. Criação, ainda, pelo uso alargado da metáfora e, sobretudo, da elipse, figura através da qual se engendram os desvios e as operações semânticas que conferem ao texto o seu estatuto de obra literária.
O poema, cujo título remete para uma ordem de natureza gramatical ou simplesmente linguística (os diacríticos, ensinam os dicionários, são sinais distintivos do timbre de certas vogais), divide-se em duas partes, cada uma delas subdividida em igual número de capítulos que funcionam como estrofes e valem como segmentos dum macrotexto cujo sentido se vai, dir-se-á, organizando e esclarecendo por si mesmo. Empurrada por um vento que sopra do deserto, a linguagem carrega consigo algumas pétalas que vai deixando na página em branco. Portadoras dum sentido originário, genesíaco, as palavras abrem sulcos num terreno onde o significado se oferece pleno de potencialidades e sugestões, carimbando de decantada expressão o corpo do poema. Tudo, aqui, é alusão. Tudo é profecia, oráculo, metamorfose. Tudo é, também, delírio. A linguagem é, como se lê no capítulo XVII da segunda secção, a "das vísceras condenadas à ilusão do verbo". Daí, talvez, o "surreal canto" para o qual somos convocados no segmento XIII da segunda secção, "A ressurreição das crias", ou aquele "deslumbrante espaço irracional" a que nos transporta o capítulo XVI da mesma secção. Espaço onde o deus sob vários modos e disfarces convocado para a cena se escreve com minúscula – outra forma de ao humano reduzir o divino, que é, parece-me, o escopo de toda a arte.
Vila Nova de Gaia, 21 de Agosto de 2010
Albano Martins
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2 comentários:
Li, com muito prazer, este excelente prefácio. Um prefácio que seduz o leitor, que o motiva, que cria expectativas...
Aguardo, com muito interesse, a linguagem "das vísceras condenadas à ilusão do verbo", um livro em que "(...) Tudo é profecia, oráculo, metamorfose (...)".
Obrigada, desde já.
Um abraço
Maria João Oliveira
Obrigado Maria João, lá espero contar com a tua presença e do Carlos.
No final da semana já poderei referir o dia e a hora exacta do lançamento.
Bj.
joão
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