domingo, 25 de março de 2012

ROTAS INEXORÁVEIS


Englobada mais uma vez na Semana Cultural da Universidade de Coimbra, a XIV Edição, que este ano decorreu sob o tema: "Navegar é preciso. Viver não é preciso [?]", saiu mais um mero da  histórica e centenária revista "Via Latina" ( o número 9 da série VI).
Tendo  participado em vários números, este ano voltei a participar com o poema "Um novo milagre é preciso". De referir, sem qualquer hipocrisia, de que estes últimos números, sob a direcção da  Eva Queiroz de Matos, vem cada vez mais a colocar a revista num patamar de qualidade (conteúdo, estética, grafismo, etc.) que se deve assinalar.
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Um novo milagre é preciso   

“A sua cidade já não existe.” Sem rosas
nem quimeras de marear
as rotas, escuta-se serodiamente
apenas o intrínseco alvoroço de vozes ausentes
de sílabas híbridas,
um hálito dos corpos ébrios de sede
e do olhar enigmático de alguns ciganos
com a alma suja de desperdícios
onde só as altivas sobras de solidão mancham
a visão retemperadora do astro-rei
queimando o mondego
quando os peixes se mutilam
desassossegando as águas de guelras vermelhas
no regaço alquímico de Isabel,

hoje o rio secou o assombro
e a infinda maresia da embarcação
dos náufragos primordiais
“desapareceu. Foi abandonada por toda a gente”,
mas no centro da cidade
está oculto um inexplicável oceano
para aqueles que nunca o ousarem sulcar,
o sustento da pedra onde se alimentam os corpos
dilacerou a sua unidade de utopia
obstruindo o percurso da boca às raízes
“e depois veio a areia e engoliu-a”.

Um novo milagre é preciso
e embeber a inutilidade de um poema é preciso,
deveremos ser bilíngues de rotas e casas
em uma única cidade
pois é nela que a nudez de quem fere e sangra
não questiona o heróico murmúrio do estorvo do verbo.
........................................................... João Rasteiro

domingo, 11 de março de 2012

ROTAS OUTRAS



como será limpar o rosto depois de agosto?

em cada sopro iluminando
a cadência do mar
para construir um nome
a fazer esquecer tudo
de desviar os olhos do outro rosto
onde nada repete outro tempo,
entre a espera e o cerco
e o sorriso se abre
na demora que concentra.

a paciência conhece o tempo da espera,
a mais felina indiferença
que é o perdão
sem pressa
e a comoção sustenta
no incómodo do esforço.
a permanência das mãos

é aqui, sempre aqui
até tudo ficar esquecido
as pequenas mãos que ignoram
que as noites sejam tensas,
que aqui perdura
o que um dia será impossível
a criar memória

depois de cada Agosto?
......................................Rui Almeida 
[In, Caderno de Milfontes - Volta D'Mar, 2012]


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http://ruialme.blogspot.com/

http://bibliotecariodebabel.com/geral/quatro-poemas-de-rui-almeida/

domingo, 4 de março de 2012

ROTAS INEXORÁVEIS

                                  "Suprema Tentação" - Dina de Sousa
                                                                                                                                                   
Algures os campos
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A natureza do poeta é fingir
a existência mais íntima da linguagem
aquele lugar onde a morte
resplandece em todos os sentidos dos pulmões
pois desde sempre a chuva
amansou os vestígios do sangue
que jorra do estilhaço das palavras inócuas,
 .
na desesperada procura do silêncio
amo a tempestade e repudio o relâmpago
e contudo as tuas sílabas dissecam-me o veneno
da seara e da cesura
em que me avivo júbilo de mim mesmo.
 .
Que precisão existirá no ângulo do poema?
 ..............................................................................João Rasteiro