domingo, 30 de novembro de 2008

Navegar é Preciso

Fernando Pessoa (Lisboa, 13/06 de 1888 — Lisboa, 30/11 de 1935).
É considerado por grande parte da crítica literária, um dos maiores poetas de língua portuguesa, e até mundial. O seu valor é comparado ao de Luís de Camões. O crítico literário norte-americano Harold Bloom, no seu livro The Western Canon -"O Cânone Ocidental"), considerou-o, ao lado do chileno Pablo Neruda, o mais representativo poeta do século XX.
Na comemoração do centenário do seu nascimento em 1988, o seu corpo foi transladado para o Mosteiro dos Jerónimos, confirmando o reconhecimento que não teve em vida. Como ele próprio referiu, a sua biografia deveria ser:
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha/
biografia,/
Não há nada mais simples./
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte./
Entre uma e outra todos os dias são meus./
In, Alberto Caeiro; Poemas Inconjuntos
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Em sua homenagem, baseado na leitura do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares:
Poema do desassossego
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I
.nasci -
folha esdrúxula
..........na crença em deus.........subproduto
..........na respiração da ciência.......poética
.....................................a carnívora gentileza
................................perdida por que sente o desassossego
volvido a crença nas montanhas que florescem
.................hálitos de formas
...........................................a humanidade na margem
dos grandes espaços virgens que vão leste-oeste – e é eterna
a sílaba que se embriaga
..............em todos os jardins do paraíso
..............a cólera minuciosa de todas as chamas
..............e ele é de víboras esverdeadas
................................submissas em torno do vulto uno
...................................................................túrgido e ferveroso
..........não aceitei deus..........improvável
................................................ponto final
................................................uma mera ideia biológica
...........a opressão que se entranha no fundo do coração
.
II
na época dos bárbaros
........................corpos de barro sagrado
...................os lugares culpados da existência da divindade
.....................................a faculdade de ainda sonhar
o júbilo dos pulmões que refulgem desumanos
....................................que brotam o adorno da flor
............................................................de se olhar a aurora
.........................................é precisamente o interstício lúcido
............................................................a alegria do sol escarlate
........................................a criança cantarolando por muitas crianças
.
III
e existir é ser monstruosamente inconsciente
..........................de matéria em matéria
...................em sua própria verdade
...................as duas dimensões do espaço:
......................................................................apenas…
João Rasteiro
...............Caetano Veloso - Os Argonautas (F. Pessoa)
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quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Movimento Perpétuo

Ciclo de poesia na Casa Municipal da Cultura
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Subordinado à designação "Poesis – Canto II" e sublinhando que "a melhor maneira de compreender um poema é ouvi-lo", o ciclo de poesia continua amanhã 28 de Novembro com a presença da Oficina de Poesia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a iniciativa promovida pela companhia de teatro Bonifrates e Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Coimbra.
Quem aparecer, porque gosta de poesia, ou porque se enganou na porta - mas será também muito bem vindo - ouvirá poesia de Fernando Pessoa e poesia sobre e a partir de PESSOA, Pessoa uno e ilimitado. A não perder! Lá vos esperamos.
De Rita Grácio, membro da Oficina de Poesia, o poema:

A FORÇA DO PODER É O PODER DA FORÇA
Poder local poder regional poder central
Izado
-poder martelar às 3 da manhã
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poder in-ternacional poder in-tra-nacional poder in-dependente
-poder muito fashion
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poder executivo poder legislativo poder judicial
poder nomear-vos repolho real
.
poder público poder privado
poder chover
ou não
.
poder espiritual poder temporal
poder escolher o demo
crata
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poder económico poder social poder político
a humanidade ao poder
.
o 5º poder
para quem tem
o poder de contar
RITA GRÁCIO
.......................Deolinda - Movimento Perpétuo Associativo

sábado, 22 de novembro de 2008

Lavra e Pousio

O livro do poeta João Rui de Sousa, Quarteto Para as Próximas Chuvas, editado pela Dom Quixote em Março passado, foi o mais recente vencedor do Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes - 2008, instituído pela Câmara Municipal de Amarante. O júri (composto por Fernando Pinto do Amaral, António Cândido Franco, Luís Adriano Carlos, António José Queiroz e Isabel Morujão) decidiu por unanimidade atribuir o prémio ao poeta que "sabe equilibrar a distensão da linguagem com um sentido elíptico que se diria voluntariamente assumido, as preocupações sociais com a ambiguidade de uma linguagem que acaba por encontrar o espaço próprio das suas imagens e metáforas, uma dispersão surrealizante com uma maior exigência e limpidez na construção poemática".
Nascido em Lisboa em 1928, João Rui de Sousa estreou-se nas Letras na revista Cassiopeia, de cujo núcleo directivo fez parte, conjuntamente com António Ramos Rosa, António Carlos (Leal da Silva), José Bento e José Terra.
Tendo publicado o seu primeiro livro, Circulação em 1960, em 2002 publicou a Obra Poética 1960­-2000 e em 2005, Lavra e Pousio.
Em toda a sua extensa obra predomina de uma forma bastante evidente uma linguagem depurada que recusa a excessiva explicitação da palavra poética e valoriza a imagem e a autonomia das palavras em detrimento da discursividade, como se procurasse sem cessar o diacrítico sagrado das palavras.
Da obra premiada, o poema "O infindável dos pretextos poéticos":
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O infindável dos pretextos poéticos
Até à evidência,
até ao clarear de aves nocturnas
em rotundos prados, até ao fogo
das queimadas
(até à queima de si mesmo
no centro das cavernas, entre cães
de Lascaux, bisontes de Altamira),
até ao gotejar da água e à lasciva
seda de dormir entre folhagens,
até ao lago fundo e até à cinza
duma penumbra errante (pragal
de nostalgia e de quebranto)
– há sempre atalhos rubros
para a escrita,
há sempre airosas rãs
para a nossa fala.
João Rui de Sousa
................"Por morrer uma andorinha" - Carlos do Carmo

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O expurgo

Talvez a água
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Há certas veias – às vezes corpos
inteiros - que eu não sei se respiram
a água e o seu esplendor de ventre.
Não sei se uma candeia, um fole,
o ângulo do calor, se expande obscuro.
As coisas tornam-se translúcidas
sob os delírios das fêmeas. Mas eu não
conheço o coração, estremeço apenas
com o sabor da argila. Procuro as vozes,
mas os tufos aderem à pele parecendo
uma película de vidro. A luz nua do sol
na textura de Inverno. Sem negligência.
O que sei é que chegam pássaros diferentes
para um lugar diferente. Fímbrias eriçadas.
Nesta mão a língua e palavras às golfadas.
Talvez a água em seu fausto estado de viço.
Porque o sangue incendeia-se topázio
algures e amadurece mel sustendo o fôlego
da demência. Talvez a água – a menstruação
de deuses em roseirais abruptos de melancolia.
João Rasteiro
................Andrea Bocelli - Canto Della Terra

domingo, 16 de novembro de 2008

A VIAGEM

José Saramago (n. Azinhaga - Ribatejo, 16 de Novembro de 1922) é ficcionista, roteirista, dramaturgo e poeta, tendo sido galardoado em 1998 com o Nobel da Literatura. Ganhou vários prémios em Portugal e no estrangeiro, tendo em Portugal também ganho o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. José Saramago é considerado por muita da crítica o principal responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa. Acaba de ser editado o seu último livro, “A Viagem do Elefante”, provavelmente um dos melhores e talvez o melhor livro que escreveu depois de receber o Nobel.
Sobre a epígrafe do livro, o prémio Nobel da Literatura português sustentou que esta "é muito clara quando diz 'sempre acabamos por chegar aonde nos esperam'". "E o que é que nos espera? A morte, simplesmente. Poderia parecer gratuita, sem sentido, a descrição, que não é exactamente uma descrição, porque é a invenção de uma viagem, mas se a olharmos deste ponto de vista, como uma metáfora, da vida em geral mas em particular da vida humana, creio que o livro funciona", explicou. É novamente Saramago no seu máximo esplendor, restando saber se é mais um livro ou o seu último, como o próprio já se questionou. Do seu livro de poesia, “PROVAVELMENTE ALEGRIA", o poema:
Poema para Luís de Camões
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Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta,
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.
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Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
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A flor mais grande do mundo - José Saramago e Emilio Aragón

http://caderno.josesaramago.org/

http://www.secrel.com.br/jpoesia/1saramago.html

http://www.estadao.com.br/arteelazer/not_art270371,0.htm

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

The begining

No princípio era o crime

No princípio era o crime, o crime limpo
que do caos em suas bocas de virgens
extraía todos os corpos da órbita coaxial
e nos ímanes os corações das palavras
que nos sustentam – ele fluiu, originando
os limites nus do mundo, a vida e a morte
nos primeiros caracteres de magia negra,
o êxtase urdido na paixão do sofrimento
e todas as pragas irromperam dos espigões,
os ecos carbónicos da demência, as raízes
que amavam as nascentes dos deuses vivos
toda a terra fervilhando em matéria sublime.
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No princípio era o crime, o crime que da chuva
fornecia a força das lágrimas, espaço de febre
em sua arte de ser flor, o perfume das distinções
da metamorfose do lírio, hoje, apenas, a poesia.
João Rasteiro
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Bob Dylan - Masters of War

sábado, 8 de novembro de 2008

"Ninguém escreve como eu"

Foi recentemente editado o último livro de António Lobo Antunes, "O Arquipélago da Insónia". Trata-se "apenas de mais uma" das obras extraordinárias, talvez de um dos três únicos ficcionistas portugueses (conjuntamente com Saramago e Agustina) merecedor de ganhar o Nobel da literatura na segunda metade do século XX. Em poesia ainda ouso sonhar com o Nobel para o Herberto. Como referiu Mário Santos no Jornal "O Público", é «Um livro magnífico e, ainda por cima, comovente. [...] o virtuosismo de uma escrita eficazmente inclinada para o fôlego e o rigor rítmicos da grande poesia.»
E é também por mais este livro e o seu encantamento, que se poderá dizer da busca literária de António Lobo Antunes o mesmo que J.M.G. Le Clézio (Nobel da Literatura de 2008) disse a propósito dessa espécie de poema assinado por Henri Michaux: «As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas sílabas, como um cego tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam. Talvez seja preciso abandonar tudo.» É um livro que nos sufoca e alimenta, porque como se diz no livro, "se uma pessoa não tem mortos não tem vivos também". E para completar de forma emblemática o post de hoje, um poema de António Lobo Antunes, até porque Portugal anda mesmo muito constipado: "A gripe e os homens..."
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Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisanas e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.
"O Arquipélago da Insónia" de António Lobo Antunes

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Anjos e demónios

XII
.sei que dos olhos do animal fêmea antes do ritual do sacrifício o fogo desce aos olhos do homem e evapora-se no espaço fragmentado das córneas. pois ele gosta de vociferar nas madrugadas aonde se abrem à fortuna as orquídeas. a brecha da pupila. o agudíssimo timbale é um bálsamo pois ele é feliz como o eunuco que não cometeu crimes com suas mãos. deus apenas lhe pediu a prova do beijo na única palavra em que lhe reconhece a cinza do nome. é no casulo da pedra que deflagram as larvas desde a cruz materna ao sumo das uvas demasiadamente vermelhas. a devastação escolta a criação que reverbera a fala de dentro de todas as trovoadas de alicerce estéril. a fragmentação do coração. e a ternura dos labirintos são beijos de metáforas como uma trepadeira oferecidos por judas. mais uma vez em nome do criador dos ciclos. os mapas envoltos em sua túnica e asas de ébano límpido.
........................................João Rasteiro
. Sérgio Godinho - Dancemos no mundo

sábado, 1 de novembro de 2008

UM ANO

Faz precisamente hoje um ano que o blogue "No Centro do Arco" começou a respirar. Tempo curto, mas simultaneamente tempo longo na blogosfera. No entanto, ainda se mantêm os gumes e as labaredas do fogo que sustentaram a sua criação. Por isso, o diacrítico das palavras continuará por mais algum tempo por aqui., mesmo se com uma ligeira "roupa" nova. Por outro lado, terminado que foi este percurso de um ano, também terminou a votação do poeta mais importante das últimas décadas em Portugal. Da luta acesa no início, entre Herberto Helder e Mário Cesariny, este veio a ser o mais votado, daí a justa homenagem com os poemas " Faz-me o favor..." e " Onan dos outros" - a pintura também é sua. E porque o seu modo de saborear a vida, foi idêntico ao de Cesariny, uma música de um dos grandes músicos portugueses das últimas décadas - António Variações. Chamo a atenção de uma nova votação ao fundo da página - Qual o livro de poesia mais marcante do século XX em Portugal? Estes foram a minha escolha, mas, se quiserem sugerir outros, ou pelo Email, ou nos comentários, eu passado algum tempo, introduzirei mais dois livros na votação. Obrigado a todos os que passaram pelo blogue, mesmo não concordando com o que publiquei ou afirmei, mas é sempre nas diferenças que se constroem as igualdades e o futuro. Porque como afirma e canta A Ramos Rosa: "Apenas quero escrever/ o que não precisa de ser escrito/ para que possa acontecer". Obrigado.
Faz-me o favor...
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Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.
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É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.
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Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.
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Onan dos outros!...
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Onan dos outros! Ó deus que dás confiança
Só a quem já confia!
E não à morrente ou garça mão que se ansa
Varonil e vazia.
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O Virgem Negra, tal me descobriram
Cincoenta anos depois,
Em minha infusão estou. Tombam, deliram
Em vão quantos seguiram
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Minha viagem ao nunca ser dois.
No seu andor de luto e de desgraça
O Virgem Negra passa
Maior que todos os sóis.
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In, Mário Cesariny - "O Virgem Negra"
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António Variações - É P´Ra Amanhã

http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/cesariny.html