sábado, 1 de setembro de 2012

ROTAS AO SUL



No 1º semestre de 2012 foi publicada a antologia de poesia «Algarve - 12 Poetas a Sul do Século XXI» (Editora Livros Capital). Esta antologia pretende representar aquilo que alguns dos mais importantes poetas do Algarve (naturais ou adoptados) fizeram nos últimos anos.
A antologia contempla poetas com obra de poesia publicada até à primeira década do século XXI e, para além de conter dez poemas por autor, com a respectiva biografia, possui ainda um ensaio crítico sobre a poesia de cada poeta, ensaio esse que foi escrito por outro poeta convidado.
O prefácio é de António Carlos Cortez, poeta, professor e crítico literário.
Os poetas antologiados são, António Ramos Rosa, Casimiro de Brito, Fernando Esteves Pinto, Gastão Cruz, José Carlos Barros, Manuel Madeira, Miguel Godinho, Nuno Júdice, Pedro Afonso, Rui Dias Simão, Tiago Nené e Vítor Gil Cardeira. E a análise crítica foi efectuada por, António Carlos Cortez, João Rasteiro, José Bivar, José Carlos Barros, Manuel Madeira, Maria do Sameiro Barroso, Miguel Godinho, Pedro Afonso, Pedro Sousa, Sylvia Beirute e Tiago Nené.
Como já repararam, tive o prazer e também algum receio, em aceitar realizar um pequeno texto de análise crítica sobre a poesia de Nuno Júdice. É pois esse texto que se segue:
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SOBRE A OBRA POÉTICA DE NUNO JÚDICE

Por um lado podemos afirmar ser hoje Nuno Júdice um dos três ou quatro nomes mais importantes da actual poesia portuguesa, além da sua importância ao nível da ficção. Por outro lado, e de certa forma, ainda é um pouco desconhecido do público em geral. É evidente que a qualidade da poesia e da literatura em geral não está (a atribuição do Nobel é disso um exemplo claro) dependente do número de prémios ou galardões, nem do número de livros editados, mas, parece-me óbvio existir alguma injustiça (que naturalmente, só o tempo se encarregará de consubstanciar ou não, como sempre fez com todas as obras e autores), nesse aparente desconhecimento que algum público, inclusive o da poesia, ainda demonstra em relação a Nuno Júdice e concretamente à sua extraordinária obra.
Podendo a poesia de Nuno Júdice ser considerada uma poesia pura e límpida, contrariamente a um António Franco Alexandre, possuidor de uma poesia bastante densa, ela é contudo na sua essência uma poesia que nos pode remeter a muitas abordagens em torno do poético, inclusive sobre o espaço na contemporaneidade e na sociedade pós-moderna, com o predomínio da “linguagem” em torno do consumo e do capital, do gosto do efémero e das experiências de vida inauditas, tornando o olhar do sujeito lírico como que um espelho reflector das paisagens e espaços que se cruzam de forma quase apocalíptica. A vida atribuída a essas “personagens”, cidade, aldeia, o sujeito pensante e o próprio poema, o branco e o negro, tornam assim mais complexa uma poesia que de certa forma é uma corrente de água transparente e colorida, transbordando em direcções várias.
Uma das marcas dominantes, ou talvez a marca dominante da sua produção lírica é a persistente reflexão sobre a prática literária e as reflexões entre escrita e conhecimento no âmbito da literatura e cultura em língua portuguesa no seu “obrigatório” diálogo com a cultura ocidental (semelhante por vezes à poesia de Vasco Graça Moura). Assiste-se a uma permanente reflexão, intercruzada entre literatura e ciência, poesia e filosofia, onde o poético indaga permanentemente a função do ser, a temporalidade e a existência num mundo de uma “globalização” em que nos encontramos “pregados ou crucificados”. Logicamente, muitas dessas reflexões e indagações vêm impregnadas de ironia e sobretudo do fingimento pessoano, uma vez que a refiguração do mundo e da própria linguagem é encenada no próprio texto poético e literário. Poder-se-á inclusive afirmar ser a poesia de Nuno Júdice um espaço privilegiado, onde o poeta é um voyeur profissional a observar o “mundo objectivo” e a transforma-lo através da subjectividade, estabelecendo um olhar crítico através do contraste entre o mundo exterior e o mundo interior do sujeito poético, o real e o imaginário, as palavras e o silêncio, permitindo ao leitor delinear paisagens e espaços ou correntes de “água fresca”, onde possa ser possível reaprender o sentido do que se vê, ou pelo menos reaprender um sentido outro através do espelho da água cristalina e límpida, um sentido que “brilha” como espelhos reflectores. Um dos espelhos recorrentes na poesia do poeta é a janela sobre a(s) cidade(s), uma vez que como afirma a professora brasileira Ida M. F. Alves: ”As imagens de cidades na poesia de Nuno Júdice acabam por alegorizar a situação e a participação do poeta na sociedade contemporânea, um perseguidor de sentidos, frente ao fugaz, às perplexidades da vida urbana”.
É o poeta em permanente reflexão e questionamento, através de imagens ou flash, solicitando a nossa “solidariedade” no entrecruzar de olhares pelas cidades, pelo espaço que nos alimenta e aniquila, tentando repensar o sujeito e o mundo, ou pelo menos “um mundo” que nos rodeia e é familiar. Como já referi, desde sempre emergiu na poesia de Nuno Júdice uma encenação do sujeito ficcional, daí ela estar povoada de “biografias imaginárias” de si próprio, numa recorrente e múltipla questionação do acto poético, suportado em todos os “odores dos mortos” (sem se preocupar com A angústia da influência, como nos é apresentada por Harold Bloom), numa escrita que possui e suporta toda uma releitura de um imensurável saber literário, mesmo se essa “irrupção nocturna” de sombras interiores, (memórias?) do sujeito literário ou do interior da terra seja muitas vezes interrompido e “colocado em sentido”, por interferências irónicas do quotidiano que nos envolve.
Nuno Júdice é hoje uma voz entre as mais altas e originais da poesia e literatura portuguesa contemporânea, na sua permanente luta contra o indizível da palavra e da poesia. Esta é ainda o mistério, a criação e a revelação do absoluto e do sagrado que o poeta tenta, com sofrimento, modelar nas formas que a língua lhe colocou à disposição ou na “liberdade” que a linguagem lhe permite e “autoriza”. É o incomensurável que ele procura dominar na convivência pertinaz de cada momento e no saborear de cada acto perante a luz que o ilumina e cega ao mesmo tempo, mesmo sabendo da impossibilidade de capturar o indefinível que nos alimenta a garganta das vozes. Por isso, como refere a poeta brasileira Vera Lúcia de Oliveira:” Nuno Júdice não despreza o recurso ao inconsciente, ao sonho, à bruma, às manhãs de Outono e Inverno, às atmosferas em que o onírico é colhido de forma profusa, impetuosa e barroca e em que os vocábulos se associam de modo aparentemente caótico, arrastando o puro e o impuro da memória”. Logo, o poeta insiste numa procura do senso íntimo e visceral de cada momento e de cada elemento, seja físico ou espiritual, essencialmente no seio da natureza revisitada pelo poeta de forma insistente através da palavra, do eco, do silêncio pertencente a essa mesma natureza. Como refere ainda Vera Lúcia de Oliveira: ”O surpreendente neste poeta é que, embora sua poesia pareça debruçada sobre si mesma, sem historicidade e sem ambição de projectar-se activa e incisivamente na realidade, na verdade para Nuno Júdice a poesia tem função altamente humanizadora, de pesquisa e conhecimento da nossa essência mais íntima, é actividade cognitiva por excelência e dela não prescindimos”.
Toda a obra de Júdice, vista em determinada perspectiva, assemelha-se a um imenso diálogo auto-reflexivo e interrogativo, em que o poeta tantas vezes se auto-indaga num sofrimento que se adivinha até ao último fôlego da carne: “Para quê/escrever?” e “O que fica/nas palavras/daquilo que se viveu?”, como se fossem as últimas palavras de um condenado, pois a poesia não tem, nem deverá ter, nenhuma utilidade prática, ela só se explica existindo. A poesia não mudará nada deste “nosso mundo”, mas este mesmo mundo talvez já não possa passar sem a poesia, mesmo se ainda não se apercebeu de tal facto. A poesia é apenas o eco do assombro que germina a palavra na apreensão directa da “realidade” da luz.
Concluindo, Nuno Júdice, com uma poesia aparentemente límpida, pura, equilibrada e, ao mesmo tempo inovadora, é hoje uma das vozes fundamentais da poesia e literatura portuguesa contemporânea, uma voz sempre com o fingimento sagrado e necessário da palavra que faz da circunstância e do reenvio pretextos para a narração das vivências que nos rodeiam, através da linguagem que nos alimenta e constrói. A palavra está sempre demonstrando a ideia “de que mais forte do que tudo é o desejo de viver”. E, como refere Nuno Júdice, no poema “Amor”, Um poema, dizes, em que/o amor se exprima, tudo/resumindo em palavras.//Mas o que fica/nas palavras/daquilo que se viveu?//Um pó de sílabas,/o ritmo pobre da/gramática, rimas sem nexo…/.
                                                                    João Rasteiro
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