terça-feira, 30 de dezembro de 2008

2009

O extremo exercício da loucura
.

Escrevo como no princípio

atrás do inóspito silêncio da faísca

curvado para dentro

boca fechada a que se confinam os cicios

apocalíptica e múrmur

em seus desvarios de garrote

e mastiga-se a intrínseca mudez que corrói

esta triste e acirrada madrugada

.

o silêncio circunflexo apaga os nomes

sorvendo a luz das glicínias

até que o poeta é desmascarado

pelo extremo e assombroso vocabulário – sagrado

e profano como se as palavras florissem

seiva e sangue

e rubras filigranas na beleza física de Auschwitz.

.

Escrevo como no princípio visceral

da explosão vulcânica dos cílios

e escrevo como se a única contrição superlativa

fosse a sílaba muda da água

porque o coração do fogo engole-nos vivos

por infinitas extensões epifânicas – aí cega a boca

na entrega híbrida do altivo dialecto

.

agora o primórdio do canto

surge elíptico no busto das cimitarras da crisopeia

na paixão dos corpos suportados nas obreias

enquanto a parábola espera que ele se renove

e grafe a morte como libérrima cascata incandescente

sob o cristalino silêncio silvestre que engoliu Elias.

João Rasteiro

....................Nessum Dorma - Paul Potts.................


sábado, 27 de dezembro de 2008

NATAL IV

ORIGEM

Abrigo dezembro, não porque me traz Natal, a ilusão. Acolho dezembro,

porque em dezembro se alinham as palavras da ode ao novo ano,

porque em dezembro se resguarda a poesia a declamar para os-sem-pão.

Porque em Dezembro tudo se pinta de falso e céu estrelado.

Mas ..... eu ..... canto dezembro porque n’ele também se beija a terra

com a humildade maternal que protege o amor. Quem nasceu?
ANTÓNIO SALVADO
.........................................Então é Natal - Simone

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Natal III

NATAL À BEIRA-RIO


É o braço do abeto a bater na vidraça?

E o ponteiro pequeno a caminho da meta!

Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,

A trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.

Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!

E o Menino nascia a bordo de um navio

Que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!

Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.

E quanto mais na terra a terra me envolvia

E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me

À beira desse cais onde Jesus nascia...

Serei dos que afinal, errando em terra firme,

Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira - Obra Poética 1948-1988
..............
John Lennon - Happy Christmas (War is Over)

sábado, 20 de dezembro de 2008

NATAL II


Um dia será Natal
.
Um dia na alma do mundo será Natal...
.
Um dia as imagens do ancestral barro colorido
no meio do musgo iludido em sonhos de voracidade
aqueles onde se pressente o rosto da exactidão
conquistarão voz em seu extenso movimento
exigindo verdade e fé e não o oiro e a crua tradição
.
Um dia na alma do mundo será Natal...
.
Um dia imporão a demissão dos actores de ópera bufa
e guiadas por uma cadente e exuberante estrela
ressuscitarão as auroras pelo percurso físico das vozes
depois com os homens lançarão os sete livros às águas
em dádiva pura - Deus estará no céu e o verbo na terra
.
Um dia na alma do mundo será Natal...
.
"Há-de vir
..................um Natal
...................................e será
..............................................o primeiro"
em que o Natal dos homens em seu folclore será verdadeiro.
.
Um dia na alma do mundo será Natal...
Manuel de Cenáculo
...........................Boss AC - Uma carta ao Pai Natal

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Natal I

«NÃO CORTEM O CORDÃO»
.
Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho,
o cordão astral à criança aldebarã, não cortem
o sangue, o ouro. A raiz da floração
coalhada com o laço
no centro das madeiras
negras. A criança do retrato
revelada lenta às luzes de quando
se dorme. Como já pensa, como tem unhas de mármore.
Não talhem a placenta por onde o fôlego
do mundo lhe ascende à cabeça.
Linhas cristalográficas atravessando os cornos.
.
A veia que a liga à morte.
Não lhe arranquem o bloco de água abraçada aonde chega
braço a braço. Sufoca.
Mas não desatem o abraço louco.
.
A terra move-a quando se move.
.
Não limpem o sal na boca. Esse objecto asteróide,
não o removam.
A árvore de alabastro que as ribeiras
frisam, deixem-na rasgar-se:
- Das entranhas, entre duas crianças, a que era viva
e a criança do sopro, suba
tanta opulência. O trabalho confuso:
que seja brilhante a púrpura.
Fieiras de enxofre, ramais de quartzo, flúor agreste nas bolsas
pulmonares. Deixem que se espalhem as redes
da respiração desde o caos materno ao sonho da criança
exacerbada,
única.
Herberto Helder - (De «Última Ciência», Assírio & Alvim, 1988;in «O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses»,direcção, organização, prefácio e notas deJosé António Gonçalves, Funchal, 1988,Prémio-Galardão de Mérito da Cultura/SRTC/89)
.............................Hino à Alegria - Beethoven

sábado, 13 de dezembro de 2008

SEIVA

..............................................Paula Rego
Se a boca virar faca cortará os lábios
.
Há poucos anjos que chorem
muitos poucos lobos que uivem cegos como a flecha.
Acenderam-se as sombras. É o Inverno fervendo o poema
ao desconcerto geográfico das pétalas do gelo.
E enquanto a terra molda um cordeiro
para alimentar as ervas
a língua com suas cabeças prodigiosas - pulcras e cruéis
despertam os fantasmas brancos - os inocentes animais da melancolia
os que sucumbem iludidos pelo cheiro
das sílabas incendiárias
harmoniosas como as virgens flores da Primavera.
...........................- Húmidas, dobradas na nuca.

*

Eis um tempo absolutamente bárbaro
porque os embriagados demónios ou deuses das palavras
trabalham ferozmente treinando os prisioneiros como arquipélagos
pois os figos maduros apodrecem nos gonzos
que suportam a escrita dos labirintos. Saúdo-te detrás do sol e da lua
onde apenas refulgem as horríveis cores das metástases
linguísticas – as raízes carnívoras dos lugares
que se espalham aos corpos nativos de luz – sob aquela frágil
e descomunal oração de Pavese: virá a morte e terá os teus olhos.
E virá a sílaba alucinada e serás aniquilado
sob a aurora. As novas idades com o fogo dentro da boca dos lírios.
...........................- Adolescentes, perversas no beijo.

*

Onde guardar a benévola catacrese do espigão
o coração surgido como um ímpeto agachado na poética
do jogo acerbo e fundo
na boca que vira faca e corta os lábios no silêncio nu
ó insana quimioterapia de bem querer
colocar todos os sonhos no intrínseco sexo de oiro – a vida e a morte
em seu rizoma sagrado – num poema inapreensível e único.
João Rasteiro
...................................Paco de Lucia

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Dream and Hope

PAPÁ

Recostado na sua cadeira, uma cadeira larga e quebrada
E polvilhada com cinzas,
O papá passa os canais, toma outro
Cálice de Seagrams, simples, e pergunta
O que fazer comigo, um rapaz novo e verde
Que nem considera a
Falta de sentido do mundo, desde
Que as coisas se me tornaram fáceis.
Fixo os olhos na sua cara, um olhar
Que lhe afasta a testa;
Estou certo que ele não tem consciência dos seus
Negros olhos de água, estes que
Balançam em diferentes direcções,
E dos seus lentos e indesejados espasmos
Que demoram a desaparecer.
Oiço, aceno abertamente até tocar na sua pálida,
Camisola bege, gritando,
Gritando nos seus ouvidos, pendurados
Com lóbulos pesados; mas ele está a contar
A sua piada, e então pergunto-lhe por que
Parece tão infeliz, ao que me responde….
Mas eu não quero mais a porcaria da resposta, porque
Passou todo o tempo, e por baixo da
Minha cadeira eu tiro o espelho que guardei;
Eu rio-me, rio-me à gargalhada, o sangue escorre
Da sua cara até à minha, e cresce
Um pequeno lugar no meu cérebro, algo
Que deverá ser extirpado, como se fosse um
Caroço de melancia, com os
Dois dedos.
O papá toma outro cálice, simples,
Repara na pequena mancha de âmbar
Nos seus calções, igual à que eu tenho nos meus, e
Faz-me cheirar do seu cheiro, e este vem
Apenas de mim; ele passa os canais, recita um poema antigo
Que escreveu antes de a sua mãe falecer,
Levanta-se, grita, e pede
Um abraço, assim que eu encolho, com os meus
Braços mal conseguindo dar a volta
ao seu grosso e oleoso pescoço, e às suas costas largas; porque
Eu vejo a minha cara emoldurada na
Armação preta dos óculos do papá,
E descubro que ele também se ri.
Barack Obama - (publicado no jornal "Feast").
.................Bob Dylan - The Times They Are A-Changin

.
http://casadospoetas.blogs.sapo.pt/31913.html
http://bibliotecariodebabel.com/tag/barack-obama/

sábado, 6 de dezembro de 2008

Exalação

...........................Sebastião Salgado
1.

No íntimo do caos
o corpo flutua
no infinito desigual
dos últimos milénios
às vezes troca de morada
e na casca trémula da pedra
ensaia uma fuga abstracta
em volta do seu corpo
um poder feminino
o misterioso feminino que dizem
ser no mistério dos cânticos
uma pequena concha imortal.
4.
Na sedução do rosto onde ardem os lírios
no espelho em cuja solidão se vê o homem
um Deus reduziu a nada a memória que
por dentro do forro do linho se escoa.
João Rasteiro
In, Respiração das Vértebras (2001)
...................Janis Joplin - Piece of my heart

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O Azul Irremediável

Álvaro Alves de Faria (Brasil, 1942). Poeta, ficcionista, ensaísta e jornalista. Autor de livros como, O Azul Irremediável (1992), Terminal (1999-2000) e À Noite, os Cavalos (2003). Em 2003, a editora Escrituras reuniu os seus 16 livros de poemas escritos até então, no volume Trajetória Poética. Mais recentemente, "zangado" com a poesia brasileira e com o próprio Brasil, publicou vários livros em Portugal, nomeadamente “20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções para Coimbra”, "Poemas portugueses", “Sete Anos de Pastor”, “A Memória do Pai”, "Inês" e “O Livro de Sophia”, que será editado brevemente. Como refere: "Portugal não influencia minha poesia. Portugal é a minha poesia de hoje. Sou um poeta português no Brasil". Talvez exagerando, ou simplesmente em grito de desespero, afirma ser hoje um “ex-poeta”no Brasil. Álvaro Alves de Faria, possui, para além de dois prémios "Jabuti de Imprensa" da Câmara Brasileira do Livro, em 1976 e 1983, pela sua "poiesis" no meio do jornalismo cultural e do prémio Anchieta para Teatro, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, com a peça “Salve-se quem puder que o jardim está pegando fogo”, o Prémio da Associação Paulista de Críticos Literários, por “Trajetória Poética”, como melhor livro do ano de 2003, o Prémio de Poesia da Academia Paulista de Letras, como melhor livro do ano de 2007, por “Babel”, e agora em 2008 foi integrado na Colecção Melhores Poemas, da Editora Global, que é o que de mais significativo existe na área da poesia no Brasil. Entre poesia, ficção, ensaio e literatura infantil possui cerca de 50 livros editados.
O Jornal Vagalume acaba de publicar uma grande entrevista ao poeta, para a qual foram convidados diversos escritores, ensaístas, poetas, jornalistas, críticos, professores universitários, etc. Do convite que me foi feito, seguem em baixo as minhas 3 perguntas inseridas na entrevista efectuada pela poeta e escritota Cida Sepulveda - a entrevista na integra, pode ser lida em:( http://www.jornalvagalume.com/50423.html ). No final, o poema "A pessoa certa" do livro "O Azul Irremediável".
(...)
7 - JOÃO RASTEIRO, poeta ,Coimbra, Portugal - JR - Quando olhamos para as palavras de Fernando Pessoa, claramente percebemos que poeta e poesia se confundem na indissociável amálgama da existência. Assim, como dissecar a afirmação do Álvaro, quando nos diz com uma certa simbiose de emoção e mágoa: “Fui buscar na poesia portuguesa o que me falta no Brasil”?ÁLVARO ALVES DE FARIA:É o que sempre digo em Portugal, meu caro João. Vou a Portugal buscar a poesia que me falta no Brasil. Literariamente, mais particularmente na Poesia, o Brasil é apenas uma mancha. O que ocorre atualmente por aqui é lastimável. Com toda sinceridade, nunca vi tanta arrogância e mediocridade juntas, misturadas. O que se produz, ressalvando sempre algumas exceções, é de uma fragilidade poética que assusta. E tudo amparado por um jornalismo cultural sem compromisso com nada. Gente que não presta mesmo. Gente que não presta é o que não falta no Brasil. Na área da poesia é uma guerra de vaidades. A mediocridade se mede por aí. O país é isto que sou obrigado a engolir todos os dias. Este é um país sem sorte. Um país à deriva. O poeta e a poesia se confundem mesmo na amálgama da existência. É assim, acredito nisso. Portanto, sou assim. Não dá para mudar a esta altura da vida. E não mudaria mesmo. Voltarei sempre a Portugal, para ter a certeza de que a poesia ainda existe em algum lugar do mundo. No Brasil eu sei que isso não é mais possível.
JR - Tendo em conta a sua relação visceral com a escrita em geral e com a poesia em particular, sendo Álvaro Alves de Faria um único “corpus” – poeta e cidadão -, como encara o Álvaro a poesia dos poetas que são colocados em patamares antagónicos, quando falamos da dialéctica obra/autor e homem/cidadão, como é exemplo bastante elucidativo Ezra Pound, ou tendo como suporte a obra de Michel Foucault – “O que é um autor?”
ÁLVARO ALVES DE FARIA: Um autor é ele mesmo, se ele for honesto consigo. Sou, sim, poeta e cidadão, uma única coisa. Sou uma só coisa. Uma única coisa. Embora o cidadão seja de quinta categoria, que é o meu caso, o poeta tenta se preservar, tenta viver no seu poema, na possíbilidade que ainda lhe é possível. Ezra Pound era fascista, mas isso não se pode falar. É proibido. A patrulha está de olho. Mas era fascista. Não separo a obra do autor. O autor e a obra têm de ter a mesma dignidade. Para falar de Ezra Pound eu aconselho ouvir os concretistas. São artistas gráficos sofríveis. Não separo a obra de seu autor. Às vezes, sinceramente, até tento, caso de Borges, por exemplo. Era um ser humano desprezível, mas com uma obra grandiosa. Voltando ao final de sua pergunta: um autor é ele mesmo, se tiver, mesmo, consciência de seu papel. Fora disso, é um lixo.
JR - “A poesia não serve para nada, não se compra pão com palavras, mas não se vive sem ela. O dizer poético é a dimensão amplificada da crise do humano. Não acalma. Ao contrário, nos mostra o quanto ao vivo é muito pior”, afirma o poeta Ricardo Aleixo. Perante tal afirmação, como continuará a poesia a interagir e desafiar o poeta Álvaro Alves de Faria e como interagirá esta com este nosso mundo de crescentes “jardins”, como o silencioso Darfur, Bagdá, Gaza ou Tibete.
ÁLVARO ALVES DE FARIA: O poeta Ricardo Aleixo tem razão. O que diz é correto. Mais do que correto. Não se vive sem a palavra, embora a palavra seja assassinada todos os dias. Mas não se vive sem ela. Eu costumo ficar 72 horas sem falar nada, mas as palavras existem dentro de mim. Falo por mímica com as pessoas. É o melhor. A poesia é mesmo um desafio. Ser poeta, especialmente no Brasil, é estar numa trincheira 24 horas por dia tentando não ser morto por ninguém. Embora a poesia mate o poeta a cada minuto da vida. “O dizer poético é a dimensão amplificada da crise do humano”, diz Ricardo Aleixo, com razão. Digo mais: a crise do ser humano não tem mais tamanho. É o todo. É o tudo. É o tido. É o que ainda resta. A poesia é só o pequeno alento ainda possível. É a faca que corta fundo e dilacera também. A poesia é o que machuca mais. Não é para amadores, muito menos aventureiros. E de amadores e aventureiros poetas o Brasil está cheio. A gente tropeça neles. E viver nesse mundo com os “jardins” a que você se refere é uma tortura diária, é a ferida que não fecha, é o grito que não cala. Mas, antes de tudo, é preciso viver. Não se trata de uma frase poética, não. É preciso, apesar de tudo. Apesar do mundo.
(...)
.
[A PESSOA CERTA]
A pessoa certa atravessa
a rua com seu terno branco
gravata de seda italiana.
A pessoa certa
executiva de si mesma
atravessa a praça
com sapatos pretos
meias de náilon norte-americanas.
A pessoa certa entra no prédio
recolhe dinheiro
cola na pasta
pega o elevador.
A pessoa certa
atravessa o hall
chega à porta giratória.
A pessoa certa
põe o pé na calçada
e cai fulminada
sem saber por quê.
In, O Azul Irremediável (1992)
...................Tanto Mar - Chico Buarque

domingo, 30 de novembro de 2008

Navegar é Preciso

Fernando Pessoa (Lisboa, 13/06 de 1888 — Lisboa, 30/11 de 1935).
É considerado por grande parte da crítica literária, um dos maiores poetas de língua portuguesa, e até mundial. O seu valor é comparado ao de Luís de Camões. O crítico literário norte-americano Harold Bloom, no seu livro The Western Canon -"O Cânone Ocidental"), considerou-o, ao lado do chileno Pablo Neruda, o mais representativo poeta do século XX.
Na comemoração do centenário do seu nascimento em 1988, o seu corpo foi transladado para o Mosteiro dos Jerónimos, confirmando o reconhecimento que não teve em vida. Como ele próprio referiu, a sua biografia deveria ser:
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha/
biografia,/
Não há nada mais simples./
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte./
Entre uma e outra todos os dias são meus./
In, Alberto Caeiro; Poemas Inconjuntos
.
Em sua homenagem, baseado na leitura do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares:
Poema do desassossego
.
I
.nasci -
folha esdrúxula
..........na crença em deus.........subproduto
..........na respiração da ciência.......poética
.....................................a carnívora gentileza
................................perdida por que sente o desassossego
volvido a crença nas montanhas que florescem
.................hálitos de formas
...........................................a humanidade na margem
dos grandes espaços virgens que vão leste-oeste – e é eterna
a sílaba que se embriaga
..............em todos os jardins do paraíso
..............a cólera minuciosa de todas as chamas
..............e ele é de víboras esverdeadas
................................submissas em torno do vulto uno
...................................................................túrgido e ferveroso
..........não aceitei deus..........improvável
................................................ponto final
................................................uma mera ideia biológica
...........a opressão que se entranha no fundo do coração
.
II
na época dos bárbaros
........................corpos de barro sagrado
...................os lugares culpados da existência da divindade
.....................................a faculdade de ainda sonhar
o júbilo dos pulmões que refulgem desumanos
....................................que brotam o adorno da flor
............................................................de se olhar a aurora
.........................................é precisamente o interstício lúcido
............................................................a alegria do sol escarlate
........................................a criança cantarolando por muitas crianças
.
III
e existir é ser monstruosamente inconsciente
..........................de matéria em matéria
...................em sua própria verdade
...................as duas dimensões do espaço:
......................................................................apenas…
João Rasteiro
...............Caetano Veloso - Os Argonautas (F. Pessoa)
.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Movimento Perpétuo

Ciclo de poesia na Casa Municipal da Cultura
.
Subordinado à designação "Poesis – Canto II" e sublinhando que "a melhor maneira de compreender um poema é ouvi-lo", o ciclo de poesia continua amanhã 28 de Novembro com a presença da Oficina de Poesia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a iniciativa promovida pela companhia de teatro Bonifrates e Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Coimbra.
Quem aparecer, porque gosta de poesia, ou porque se enganou na porta - mas será também muito bem vindo - ouvirá poesia de Fernando Pessoa e poesia sobre e a partir de PESSOA, Pessoa uno e ilimitado. A não perder! Lá vos esperamos.
De Rita Grácio, membro da Oficina de Poesia, o poema:

A FORÇA DO PODER É O PODER DA FORÇA
Poder local poder regional poder central
Izado
-poder martelar às 3 da manhã
.
poder in-ternacional poder in-tra-nacional poder in-dependente
-poder muito fashion
.
poder executivo poder legislativo poder judicial
poder nomear-vos repolho real
.
poder público poder privado
poder chover
ou não
.
poder espiritual poder temporal
poder escolher o demo
crata
.
poder económico poder social poder político
a humanidade ao poder
.
o 5º poder
para quem tem
o poder de contar
RITA GRÁCIO
.......................Deolinda - Movimento Perpétuo Associativo

sábado, 22 de novembro de 2008

Lavra e Pousio

O livro do poeta João Rui de Sousa, Quarteto Para as Próximas Chuvas, editado pela Dom Quixote em Março passado, foi o mais recente vencedor do Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes - 2008, instituído pela Câmara Municipal de Amarante. O júri (composto por Fernando Pinto do Amaral, António Cândido Franco, Luís Adriano Carlos, António José Queiroz e Isabel Morujão) decidiu por unanimidade atribuir o prémio ao poeta que "sabe equilibrar a distensão da linguagem com um sentido elíptico que se diria voluntariamente assumido, as preocupações sociais com a ambiguidade de uma linguagem que acaba por encontrar o espaço próprio das suas imagens e metáforas, uma dispersão surrealizante com uma maior exigência e limpidez na construção poemática".
Nascido em Lisboa em 1928, João Rui de Sousa estreou-se nas Letras na revista Cassiopeia, de cujo núcleo directivo fez parte, conjuntamente com António Ramos Rosa, António Carlos (Leal da Silva), José Bento e José Terra.
Tendo publicado o seu primeiro livro, Circulação em 1960, em 2002 publicou a Obra Poética 1960­-2000 e em 2005, Lavra e Pousio.
Em toda a sua extensa obra predomina de uma forma bastante evidente uma linguagem depurada que recusa a excessiva explicitação da palavra poética e valoriza a imagem e a autonomia das palavras em detrimento da discursividade, como se procurasse sem cessar o diacrítico sagrado das palavras.
Da obra premiada, o poema "O infindável dos pretextos poéticos":
.
O infindável dos pretextos poéticos
Até à evidência,
até ao clarear de aves nocturnas
em rotundos prados, até ao fogo
das queimadas
(até à queima de si mesmo
no centro das cavernas, entre cães
de Lascaux, bisontes de Altamira),
até ao gotejar da água e à lasciva
seda de dormir entre folhagens,
até ao lago fundo e até à cinza
duma penumbra errante (pragal
de nostalgia e de quebranto)
– há sempre atalhos rubros
para a escrita,
há sempre airosas rãs
para a nossa fala.
João Rui de Sousa
................"Por morrer uma andorinha" - Carlos do Carmo

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O expurgo

Talvez a água
.
Há certas veias – às vezes corpos
inteiros - que eu não sei se respiram
a água e o seu esplendor de ventre.
Não sei se uma candeia, um fole,
o ângulo do calor, se expande obscuro.
As coisas tornam-se translúcidas
sob os delírios das fêmeas. Mas eu não
conheço o coração, estremeço apenas
com o sabor da argila. Procuro as vozes,
mas os tufos aderem à pele parecendo
uma película de vidro. A luz nua do sol
na textura de Inverno. Sem negligência.
O que sei é que chegam pássaros diferentes
para um lugar diferente. Fímbrias eriçadas.
Nesta mão a língua e palavras às golfadas.
Talvez a água em seu fausto estado de viço.
Porque o sangue incendeia-se topázio
algures e amadurece mel sustendo o fôlego
da demência. Talvez a água – a menstruação
de deuses em roseirais abruptos de melancolia.
João Rasteiro
................Andrea Bocelli - Canto Della Terra

domingo, 16 de novembro de 2008

A VIAGEM

José Saramago (n. Azinhaga - Ribatejo, 16 de Novembro de 1922) é ficcionista, roteirista, dramaturgo e poeta, tendo sido galardoado em 1998 com o Nobel da Literatura. Ganhou vários prémios em Portugal e no estrangeiro, tendo em Portugal também ganho o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa. José Saramago é considerado por muita da crítica o principal responsável pelo efectivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa. Acaba de ser editado o seu último livro, “A Viagem do Elefante”, provavelmente um dos melhores e talvez o melhor livro que escreveu depois de receber o Nobel.
Sobre a epígrafe do livro, o prémio Nobel da Literatura português sustentou que esta "é muito clara quando diz 'sempre acabamos por chegar aonde nos esperam'". "E o que é que nos espera? A morte, simplesmente. Poderia parecer gratuita, sem sentido, a descrição, que não é exactamente uma descrição, porque é a invenção de uma viagem, mas se a olharmos deste ponto de vista, como uma metáfora, da vida em geral mas em particular da vida humana, creio que o livro funciona", explicou. É novamente Saramago no seu máximo esplendor, restando saber se é mais um livro ou o seu último, como o próprio já se questionou. Do seu livro de poesia, “PROVAVELMENTE ALEGRIA", o poema:
Poema para Luís de Camões
.
Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta,
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.
.
Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
.
A flor mais grande do mundo - José Saramago e Emilio Aragón

http://caderno.josesaramago.org/

http://www.secrel.com.br/jpoesia/1saramago.html

http://www.estadao.com.br/arteelazer/not_art270371,0.htm

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

The begining

No princípio era o crime

No princípio era o crime, o crime limpo
que do caos em suas bocas de virgens
extraía todos os corpos da órbita coaxial
e nos ímanes os corações das palavras
que nos sustentam – ele fluiu, originando
os limites nus do mundo, a vida e a morte
nos primeiros caracteres de magia negra,
o êxtase urdido na paixão do sofrimento
e todas as pragas irromperam dos espigões,
os ecos carbónicos da demência, as raízes
que amavam as nascentes dos deuses vivos
toda a terra fervilhando em matéria sublime.
.
.
No princípio era o crime, o crime que da chuva
fornecia a força das lágrimas, espaço de febre
em sua arte de ser flor, o perfume das distinções
da metamorfose do lírio, hoje, apenas, a poesia.
João Rasteiro
.
Bob Dylan - Masters of War

sábado, 8 de novembro de 2008

"Ninguém escreve como eu"

Foi recentemente editado o último livro de António Lobo Antunes, "O Arquipélago da Insónia". Trata-se "apenas de mais uma" das obras extraordinárias, talvez de um dos três únicos ficcionistas portugueses (conjuntamente com Saramago e Agustina) merecedor de ganhar o Nobel da literatura na segunda metade do século XX. Em poesia ainda ouso sonhar com o Nobel para o Herberto. Como referiu Mário Santos no Jornal "O Público", é «Um livro magnífico e, ainda por cima, comovente. [...] o virtuosismo de uma escrita eficazmente inclinada para o fôlego e o rigor rítmicos da grande poesia.»
E é também por mais este livro e o seu encantamento, que se poderá dizer da busca literária de António Lobo Antunes o mesmo que J.M.G. Le Clézio (Nobel da Literatura de 2008) disse a propósito dessa espécie de poema assinado por Henri Michaux: «As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas sílabas, como um cego tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam. Talvez seja preciso abandonar tudo.» É um livro que nos sufoca e alimenta, porque como se diz no livro, "se uma pessoa não tem mortos não tem vivos também". E para completar de forma emblemática o post de hoje, um poema de António Lobo Antunes, até porque Portugal anda mesmo muito constipado: "A gripe e os homens..."
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Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisanas e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.
"O Arquipélago da Insónia" de António Lobo Antunes

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Anjos e demónios

XII
.sei que dos olhos do animal fêmea antes do ritual do sacrifício o fogo desce aos olhos do homem e evapora-se no espaço fragmentado das córneas. pois ele gosta de vociferar nas madrugadas aonde se abrem à fortuna as orquídeas. a brecha da pupila. o agudíssimo timbale é um bálsamo pois ele é feliz como o eunuco que não cometeu crimes com suas mãos. deus apenas lhe pediu a prova do beijo na única palavra em que lhe reconhece a cinza do nome. é no casulo da pedra que deflagram as larvas desde a cruz materna ao sumo das uvas demasiadamente vermelhas. a devastação escolta a criação que reverbera a fala de dentro de todas as trovoadas de alicerce estéril. a fragmentação do coração. e a ternura dos labirintos são beijos de metáforas como uma trepadeira oferecidos por judas. mais uma vez em nome do criador dos ciclos. os mapas envoltos em sua túnica e asas de ébano límpido.
........................................João Rasteiro
. Sérgio Godinho - Dancemos no mundo

sábado, 1 de novembro de 2008

UM ANO

Faz precisamente hoje um ano que o blogue "No Centro do Arco" começou a respirar. Tempo curto, mas simultaneamente tempo longo na blogosfera. No entanto, ainda se mantêm os gumes e as labaredas do fogo que sustentaram a sua criação. Por isso, o diacrítico das palavras continuará por mais algum tempo por aqui., mesmo se com uma ligeira "roupa" nova. Por outro lado, terminado que foi este percurso de um ano, também terminou a votação do poeta mais importante das últimas décadas em Portugal. Da luta acesa no início, entre Herberto Helder e Mário Cesariny, este veio a ser o mais votado, daí a justa homenagem com os poemas " Faz-me o favor..." e " Onan dos outros" - a pintura também é sua. E porque o seu modo de saborear a vida, foi idêntico ao de Cesariny, uma música de um dos grandes músicos portugueses das últimas décadas - António Variações. Chamo a atenção de uma nova votação ao fundo da página - Qual o livro de poesia mais marcante do século XX em Portugal? Estes foram a minha escolha, mas, se quiserem sugerir outros, ou pelo Email, ou nos comentários, eu passado algum tempo, introduzirei mais dois livros na votação. Obrigado a todos os que passaram pelo blogue, mesmo não concordando com o que publiquei ou afirmei, mas é sempre nas diferenças que se constroem as igualdades e o futuro. Porque como afirma e canta A Ramos Rosa: "Apenas quero escrever/ o que não precisa de ser escrito/ para que possa acontecer". Obrigado.
Faz-me o favor...
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Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.
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É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.
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Tu és melhor -- muito melhor!--
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.
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Onan dos outros!...
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Onan dos outros! Ó deus que dás confiança
Só a quem já confia!
E não à morrente ou garça mão que se ansa
Varonil e vazia.
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O Virgem Negra, tal me descobriram
Cincoenta anos depois,
Em minha infusão estou. Tombam, deliram
Em vão quantos seguiram
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Minha viagem ao nunca ser dois.
No seu andor de luto e de desgraça
O Virgem Negra passa
Maior que todos os sóis.
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In, Mário Cesariny - "O Virgem Negra"
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António Variações - É P´Ra Amanhã

http://users.isr.ist.utl.pt/~cfb/VdS/cesariny.html

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Marcas de urze

A editora Cosmorama acaba de editar a primeira obra de Catarina Costa, "Marcas de urze". Este livro é o resultado do Primeiro Prémio de Poesia Guilherme de Faria, 2007/2008, promovido pela Cosmorama. Catarina Costa que já publicou vários poemas e efectuou imensas leituras públicas no âmbito da "Oficina de Poesia" da Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra, que integra já a alguns anos, apresenta-nos uma primeira obra, que embora ainda possua ligeiros desiquilíbrios, já possui aquela "força" que nos atrai para o/um livro, para os poemas, para as palavras e o seu diacrítico.
Penso que poderá ser uma boa surpresa este livro de poesia, inclusive, como já foi referido, porque se trata de um primeiro livro. Do livro que se divide em quatro partes: "o que enterras", "aquele que pesa o ábaco", "não sabemos quem ela foi" e "esses que se arrastam", seguem-se os seguintes os poemas:
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o que enterras é ainda deste lado da abundância
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sobre os túmulos articula-se a percepção das vigílias
enquanto a ampulheta deixa cair a pérola corrediça
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nas regiões que moem prosódias
a numeração das covas já não é a única arte que conheces
e por fórmulas que vertem interiormente
meditas a gnomónica
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ao pasaares pelos meteoritos
descobres onde os ferreiros escondem o relógio de sol
que clarifica tua partida para o segundo acampamento
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rastejam numa cena bíblica
com estábulos que se abrem ao lúmen
e vacas que se adensam
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a terra está em pose prodigiosa
porém nada se transfigura
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-a palha empalidece verídica
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não é um fresco
mas sim um fotograma
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embora olhem para nós desde a adoração
rastejam com a veemência deste século
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Madredeus - O Pastor

sábado, 25 de outubro de 2008

Nas margens do Tormes

Agora que o Francisco Curate anda por terras do Tormes, sorrio lembrando-me da minha estadia em Salamanca em 2005, no âmbito do lançamento da bela antologia "Cánticos de la frontera", coordenada pelos poetas e amigos Alfredo Pérez Alencart e António Salvado e das memoráveis leituras efectuadas por todos os poetas na Casa de las Conchas, coloco hoje no blogue um poema publicado por mim na revista "Papeles del Novelty", revista que é editada pelo mais antigo e famoso café de Salamanca, situado na Plaza Mayor, homenageando os Miguéis e naturalmente a extraordinária e mágica Salamanca e a frescura divina do Tormes. A música também é de um amigo Salmantino, o trovador Gabriel Calvo.

Na rota dos faunos
......................A Unamuno e Torga
1.

Em Agosto, a cidade tem o nome acorrentado
à pedra acesa que vislumbra a luz dos poetas,
vieram dos trilhos onde os animais respiram
as juras sagradas da liberdade que aprisiona.
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2.
Pela tarde, o sol rasga a ferocidade da muralha
obstinada, Tormes cerca, lentamente, enquanto
se vai cerrando o coração das aves e as bocas
da Plaza Mayor. O que as cores embrionárias
alienavam só a palavra alteia nas veias, agora.
Todos os lugares regressam sísmicos, mesmo
a noite que conjectura os olhos das serpentes
com sede. A cidade cega persiste junto à cal.
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3.
De puro oiro é a cidade, e de pedras que ferem
adornadas as estirpes da Casa de las Muertes, só
o sangue aflora das cânulas dos ancestrais livros
que abrigam o sopro dos sete poemas revelados
pelas fábulas, pela quimera opulenta dos Migueis.
.
4.
E a noite brota a blasfémia das pedras arrosadas,
o assombro das águas, o augúrio das vozes nuas,
o universo absoluto percorrendo a peleja do verbo.
.
5.
Têm agora a idade das pedras, a paixão da sílaba
na arquitectura dos sulcos, aberta sobre o mundo.
...................................................João Rasteiro
In, Papeles del Novelty - Revista de creación y mantenimiento, nº 17, Salamanca, 2008
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Gabriel Calvo

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Antropofagia

Oswald de Andrade: São Paulo, 11/01/1890 - São Paulo 22/10/1954, foi um poeta, ficcionista, ensaísta e dramaturgo brasileiro. Foi um dos grandes promotores da Semana de Arte Moderna de 1992 em São Paulo, tornando-se um dos nomes fundamentais do modernismo literário brasileiro. É considerado pela crítica como o elemento mais rebelde do grupo e o autor de dois incontornáveis manifestos modernistas:O Manifesto da Poesia Pau Brasil e o Manifesto Antropófago. As ideias de Oswald de Andrade influenciaram também de forma intensa diversas áreas da criação artística: na música o tropicalismo, na poesia o movimento dos concretistas e na área teatral, grupos como Teatro Oficina e Cia.

Brasil
O Zé Pereira chegou de caravela

E perguntou pro guarani da mata virgem
- Sois cristão?
- Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
- Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval

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Minha terra tem palmares
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.

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Erro de português
Quando o português chegou

Debaixo de uma bruta chuva

Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
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Há poesia


Há poesia na dor
na flor
no beija-flor
no elevador
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sábado, 18 de outubro de 2008

Divindades

Deus por deus
.................A Eduardo Lourenço
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Mas o poeta, o alucinado e incandescente poeta,
revestido de sílabas – poucas – aparentando o tempo,
uma breve autoridade, poeta preso nas cidades vastas,
mostrando as suas habilidades perante a ânsia dos céus
dentro de muralhas que devaneiam o diacrítico do mar,
o exacerbado poeta, ingenuamente concebe o sussurro
das pétalas de rosa azul que nunca ninguém ousou criar
porque os deuses julgam-se imutáveis na luz do espelho.
.

Os antigos trovadores invocavam as musas sob as luas
Shakespeare, o pequeno e terno irmão de Deus, aquele
imortal que viu a obra duplicar fantasmagoricamente no
oitavo dia da criação, rogava diariamente a seu irmão,
ele, o poeta da cidade, o que amplia criação à realidade,
à criação urbana, renovando o mundo em suas nuas leis
do circo urbano, a arena onde nos digladiamos no desejo
nós, os mais altivos e singulares leões de nós mesmos,
invoca-se a si próprio, deus díspar da única criação, a
obra da ironia da linguagem e da melancolia do verbo,
mas como sei que não aparecerá nas rotações do poema,
em raro ensejo de lucidez irrompe os espaços e conceitos
deita fogo a todas as suas recentes e geniais criações
de pétalas de rosas azuis e galáxias de cristalina garganta.
.

Quando as muralhas se abrirem ao mar e aos raios do sol
o poeta da cidade, não se invocará omnipotente em vão
e descansando entre divinos anjos e animalescos humanos
contemplará a absoluta redenção do caos por si criado
e cantará a devastação das lágrimas da tristeza e da alegria
onde floresce o dialecto assimétrico das novas gramáticas
porque a purificação do caos é tão assombrosa e excitante
como o paraíso primordial de onde nos julgámos expulsos
devido à linguagem da única arca de Noé que sobreviveu.
.

Hoje, o poeta da cidade emprega artifícios e não magia
tentando tornar visível a efémera ostentação de si mesmo
no manto doirado da poesia – esse trama em que o mundo
se construiu – e repudiando Cavafis, quando este cantava
os acúleos bárbaros em seus lamentos – "aquela gente era
uma solução"
– porque das guelras um anzol trepava ao céu.
João Rasteiro
Pedro Abrunhosa - A cada não que dizes

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Anotação do Mal

Na semana passada, ficou a saber­‑se que o prémio de ficção do PEN Clube foi este ano atribuído a Jaime Rocha, com o livro: Anotação do Mal. Foram ainda atribuídos os seguintes prémios:
Poesia, Helder Moura Pereira, com Segredos do Reino Animal e Daniel Jonas, com, Sonótono.
Ensaio, José Vitorino de Pina Martins, com, História de Livros para a História do Livro e António M. Machado Pires, com, Luz e Sombras no Século XIX em Portugal.
Primeira Obra, Francisco Camacho, com, Niassa e Maria Helena Santana, com, Literatura e Ciência na Ficção do Século XIX.
Jaime Rocha, hoje sem qualquer dúvida, uma das vozes mais importantes do nosso meio literário, quer seja ao nível do teatro, poesia, ficção ou ensaio. No domínio da poesia, obras como Os Que Vão Morrer, (2000), Zona de Caça (2002), Do Extermínio (2003), Lacrimatória (2005), Homem Branco Homem Negro (2005) Anotação do Mal(2007), só para enunciar as mais recentes, fazem de Jaime Rocha já um nome marcante da poesia e literatura portuguesa em geral. Do livro Lacrimatória (2005), o poema Lacrimatória 41:
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Depois, o guerreiro vai à sua procura caminhando
por um fosso, enquanto a mulher, meio estátua,
meio visão, o aguarda para lhe entregar os venenos,
despindo-se, atraindo os morcegos. Um fio de cobre
ilumina-lhe os ombros, o mesmo fio que traz o vento
e a música para dentro do seu corpo, mas o desejo
dela é ficar emparedada, presa a um castanheiro,
longe dos ruídos das fogueiras. O homem uiva no
pequeno pátio à entrada do mausoléu. Sabe que a
memória da mulher é como um véu que cai do tecto
para o abrigar. Ele é o único homem que habita a
ilha onde jaz o seu corpo. Por isso, a sua dor é oculta,
aproxima-se do frio coberto de lágrimas vazias. Já
não lhe interessam os anjos, nem a dança dos peixes.
Só o mármore e os pássaros negros.
Jaime Rocha
Madredeus - Não muito distante