domingo, 30 de março de 2008

Lugares

H. Bosch - O jardim das delícias
Antes ramos e rosas
Ao A. Ramos Rosa

Ter um corpo de branco, um eco
todo silêncio: palavra!
Vozes, céu, terra, linho, o acto desnudo
fresco e fresco, fresco
e mãos acesas de sexos iniciais de imensos universos.
Um eco: uma língua
quase frémito, no coração dos hortos , completa e contínua.

Um corpo que morre no sabor entre as palavras
sobre o rosto incandescente do espanto: deus
nas talhas, no barro, no fresco, no sangue,
pai, filho, sílaba e espírito obscuro
de paragens, sopros, paisagens, círculos e hortos,
a terra branca, límpida nas veias: antes ramos e rosas.

O Corpo?
Um corpo de água?
O animal atónito, inabitado?
Um animal de branco, desejos no interior de constelações
sumptuosas, a terra aberta, silêncios: toda a terra, branca.

Não conheço esse corpo fresco, não fui a esse branco
espaço de todas as palavras, o hálito vivo da inquietação,
a respiração inaudível das formas nuas: antes ramos e rosas.
In, O Búzio de Istambul - 2008
http://br.youtube.com/watch?v=pRV9QCXLtHQ

quinta-feira, 27 de março de 2008

Lugares

(...)Aproximam-se paulatinamente os ciclos finais das cidades, dos lugares com corações de ferro enxuto, embriagados em jogos de nocturnas deambulações com os seus insectos negros, de um negro faiscante. Neste espaço, os sítios da revelação eram as caves, os sótãos e o silêncio que ainda subsistiam como memória de vidas e deuses, cuja posteridade e sombra se deixou reduzir a precários vestígios de granito sombrio, de bocas cozidas na pedra.
Cidades delineadas na incandescência da blasfémia que imagina a linguagem dos campos inaugurados e renovados, dos campos no centro dos homens inquietos. Os campos vibrando nas hastes aguçadas do centeio.
Passou bastante tempo antes que a memória voltasse à sua paisagem. E quando o fez, foi ao encontro dos amieiros e do sabor da terra húmida.
A aldeia, porém, é um corpo de palavras e crianças – e as suas mãos fixam-se de forma enigmática ao tumulto do mel que irrompe do coração da terra, fazendo com que os sonhos despertem e a vida recomece, por essa força que a devora por dentro como uma queimadura polida, restituindo a memória dos gnomos ao sonâmbulo que se fantasiou neste sonho alquímico.
(...)
In, O Búzio de Istambul - 2008

segunda-feira, 24 de março de 2008

Ressurreição

Retábulo da Capela-mor da Sé de Viseu - RESSURREIÇÃO
A voz solitária do homem
.
Há palavras que escrevemos mais depressa
o terror dessas palavras derruba
o passado dos homens
são tão pouco: vestígios, índices, poeira
mas nada lhes é desconhecido
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens
a ligeira mudança que resgataria
o abandono, todo o abandono
José Tolentino Mendonça
http://www.astormentas.com/din/poemas.asp?autor=Jos%E9+Tolentino+Mendon%E7a
http://br.youtube.com/watch?v=AXezOzhSUUM&feature=related
http://br.youtube.com/watch?v=QkswwUnqRRU&feature=related

sexta-feira, 21 de março de 2008

Dia mundial da poesia

O Dia Mundial da Poesia comemora-se a 21 de Março, sexta-feira, por iniciativa da UNESCO, que o proclamou em 1999 com o objectivo de defender a diversidade linguística.
Em forma de homenagem, dois poemas, um, do nosso POETA, Luís de Camões e outro, de Vitorino Nemésio, como forma de "satisfazer" o poeta e amigo, valter hugo mãe.

Enquanto quis Fortuna que tivesse

Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.
.
Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não disesse
.
Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,
.
Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.
Luís de Camões

A Concha
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
.
E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.
.
A minha casa. . . Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
Vitorino Nemésio
.
P. S. ---> O dia mundial da poesia também irá ser celebrado através de uma expoemização, (exposição de poemas) intitulada “aranhiças & elefantes”. A exposição será apresentada pelo projecto poético “5 aranhiças” e decorrerá a partir de 21 de Março, no Café com Arte e no Feito Conceito, em Coimbra. É sem dúvida, uma boa oportunidade para se olhar a poesia sob uma outra perspectiva. Da exposição ainda se poderá levar uma pequena lembrança poética.

quarta-feira, 19 de março de 2008

A rotação do mundo

Herança
............Ao Manuel Rasteiro

Junto às margens impassíveis dos rios da Babilónia
os salgueiros têm fólio espinhos hábeis de silêncios,

o silêncio obriga-me a ouvi-lo e agride sem compaixão
a memória absoluta a chama que se desfibra metálica
entre as cordas a última jangada nas veias da água,

o meu amor é uma navalha na cúmplice garganta
reinventando hoje o retorno da tua voz hálito genuíno
iluminando-te lentamente na cozedura plena das palavras,

agora tu és uno como o tempo despido dos dias robustos
na tua morte floresce a arquitectura nua da minha morte
aves em vigília serena sobre os rebentos dos salgueiros,

quero apreender a semente nas águas puras da Babilónia
acústica sagrada do búzio que cadencia a tua imagem
espelho hibernal que subsistia entre ti e a boca da morte,

emudecido sei que onde as feridas se alojam indolentes
a cria dobra-se do regaço incorruptível e agora sou adulto.
João Rasteiro

http://tw.youtube.com/watch?v=26g1jQG-n4Y&feature=related
http://tw.youtube.com/watch?v=Jek6iP6AuAQ

domingo, 16 de março de 2008

Intradoxos ou a calebração da palavra

márcio-andré nasceu em 1978 no Rio de Janeiro. Formado em letras, e com mestrado em poética, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autor dos livros Movimento Perpétuo, de 2002, Cazas, de 2006, e Intradoxos, de 2007. É co-fundador, editor e ensaísta da revista de arte e literatura Confraria, produzida em parceria com o Sector de Pós-graduação em Letras da UFRJ e a editora Confraria do Vento, da qual é também coordenador editorial. Artista multimídia, desenvolve trabalho performático, no qual toca violino e recita poesia simultaneamente, com o auxílio de sons pré-gravados, projeções de imagens e códigos-fonte, árvores gerativas e plantas baixas. O aprimoramento dessa sua proposta levou-o à criação do projecto-grupo Arranjos para Assobio, de texturas poéticas e realidades experimentais, que, misturando expressão física e oral, projecções, elementos sonoros e cénicos, pesquisa novas formas de leitura da poesia.
A poesia de márcio-andré combina textos de alto teor imagético com partituras, códigos fonte, árvores gerativas, plantas baixa, e se insinua em direcção à interdisciplinaridade, ao fundir poesia escrita com cantatas cénicas e projecções de dança. Recentemente vêm trabalhando no que chama poética das casas, cujo interesse é a investigação de uma hermenêutica do urbano, espécie de geopoética que está sendo publicada sob a forma de ensaios e poemas.
Através de de uma poesia que é essencialmente na sua essência, tensão, confronto e sobretudo "agir", onde nada está fixo e tudo está suspenso na dinâmica do saber e não saber, na ânsia trágica de visionar a ínfíma luz do poema, o lugar, a "casa" onde se situa o poder da linguagem, márcio-andré é hoje, sem dúvida, uma voz maior na poesia contemporânea brasileira.

Os ornamentos
e o homem foi arrancado da casca da noite
e acrescido de dentes e olhos
e foi trançado dia e dotado de ouvido

e ouviu:
o trigo roçando o éter de Galileu
os pés descalços
a grama úmida de hortelã –

e ouviu:
a pele inviolável
de seu corpo inviolável
[germinar lagartas nos arremedos de vértebra]
flanco e dorso
das carcaças de pachiderme
um hipopótamo sonhando entre os girassóis

CAZAS (FRAGMENTOS)

As casas são 30% tijolos e 70% sonhos

......[1] casas-frutas
...........casas-mundos

.....[2] a
..........cidade-mitose
..........cidade aerada [um seu subterrâneo
..........aleatório]


era jovem a mulher na cozinha
.........o cabelo com o dobro da idade

.........fruta-falo em seu ventre

.........na ontologia dos detalhes
.........os utensílios tem parte com os delírios

.....[3]

.........a estrutura óssea da casa
.........não suporta vibrações de realejo
márcio-andré
http://www.marcioandre.com/marcioandre.htm
http://www.germinaliteratura.com.br/mandre.htm
http://tw.youtube.com/watch?v=7I_gISGJZek

quinta-feira, 13 de março de 2008

Lugares

Marc Chagall
Bebeste o sangue dos animais
os teus voos amadureceram
ao longo dos lugares.
Os ninhos acolhedores do morcego.
Mas não descestes às cavernas
onde estão os leprosos
com as fábulas e os líquidos sagrados.
Os poderes da noite já se esgotam
e as pupilas procuram a luz
que regressa dos labirintos da escuridão.
João Rasteiro

terça-feira, 11 de março de 2008

"Uma Pedra ao Lado da Evidência "

"em surdina me preparo para morrer" é um verso de Sebastião Alba (Braga, 11/03/1940 - 14/10/2000).
Cedo foi para Moçambique, aí, foi desertor do Exército português, esteve ligado à Frelimo, foi preso, versos seus saíram na revista Caliban, dirigida por João Pedro Grabato Dias (António Quadros) e Rui Knopfli. Já depois da independência frequentou um curso de formação da Frelino e chegou a ser nomeado administrador da província da Zambézia, além de dar aulas de formação politica. Mas o poeta, que José Craveirinha qualificou como "um dos grandiosos deuses humildes da palavra", foi-se desiludindo com a evolução da situação politica e da Frelimo, e em 1983 regressou, com a mulher e as duas filhas, à sua terra natal, Braga. Separa-se, bebe muito, passa a viver em quartos de aluguer e a procurar sucessivos empregos, faz tentativas de desintoxicação. A partir de 1994 refugia sobretudo no álcool e no tabaco. Como referiu Virgílio Alberto Vieira, "Um dia chateou-se com tudo e optou por viver sob um texto de estrelas".
Muitas vezes, metia poemas manuscritos debaixo das portas ou na caixa do correio dos poucos amigos, sobretudo poemas dedicados a animais.
Publicou vários poemas e alguns livros, em 1996, é publicada pela Editora Assírio e Alvim, através da colaboração do poeta Herberto Hélder, "A Noite Dividida", que tenta recuperar o conjunto da sua obra poética, embora incompleta.
Sebastião Alba, faleceu com 60 anos, atropelado numa rodovia. Deixou um bilhete dirigido ao irmão: «Se um dia encontrarem o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá»
"O vagabundo pôde por fim habitar a eterna morada do comum dos mortais; o poeta, esse, ainda anda por aí", como referiu Fernando Pinheiro.
Em forma de homenagem e de descoberta deste nome da poesia e literatura em língua portuguesa, que precisa de ser "destapado" e valorizado com urgência, dois belos textos:
A UM FILHO MORTO

Ontem a comoção foi da espessura dum susto
duma árvore correndo
vertiginosamente para dentro do desastre

E já não choramos. Passamos
sem que o mais acurado apelo
nos decida

Nas camisas
teu monograma desanlaça-se.
Tua mão vê-o nos céus nocturnos
sabe que há uma ígnea
chave algures

Minha tristeza não tem expressão visível
como quando a chuva cessa
sobre a dádiva fugaz do nosso sangue
que hoje embebe a terra

É tal a ordem em nós
que um odor a bafio sai de nossas bocas
e uma teia de aranha interrompe o olhar
que te envolveu em vão.
.
A ORELHA DE VAN GOGH
"Era em Tete – parece a abetura de “ Salambô “, de Flaubert, deixa lá isso. Tete, uma vila colonial, em Moçambique, tinha dois clubes onde se dançava, em certas datas. Mas, nos outros dias, funcionários jogavam cartas, ouviam música.Uma noite eu ia de nossa casa ao encontro de meu pai que era professor ali, em 1950. Só, por um passeio térreo, sob as acácias comecei a ouvir música. Eu tinha dez anos. Vinha até mim de um dos clubes, pelas janelas abertas. Sabes o que fiz? Corri, com medo que aquilo acabasse. Era a 4a Sinfonia, de Brahms, soube-o depois.Ainda hoje, oiço os primeiros acordes da 4a Sinfonia , de Brahms, e fico arrepiado. É um arrepio físico. Poderás vê-lo na pele dos meus braços quando, um dia, a ouvirmos em qualquer parte os dois.Lembrou-me, ontem, um mito grego. A minha flecha crava-se no teu rosto cego, não falho. Ele também não, desde que se deixe “ guiar “; lê essa frase de Van Gogh. É uma carta estranha esquece-a; esquece-a.Um pintor que sempre me alucinou foi este. Teve no meu destino uma influência decisiva. E nada sei de pintura!Nunca acreditei naquela história da orelha oferecida numa folha de couve a qulquer prostituta. Ele estava com uma alucinação auditiva e à beira da loucura – era o sol de Arles, o Kamesin, o vento do deserto; saía todas as manhãs com o cavalete às costas. Não faltava nada a esse holandês. Só a esperança nos homens do seu tempo e no dos outros".
Sebastião Alba
http://boticelli.no.sapo.pt/sebastiao_alba.htm
http://www.macua.org/livros/sebalba.html

sábado, 8 de março de 2008

Dia Internacional da Mulher

PORQUÊ O DIA 8 DE MARÇO
.
Neste dia, do ano de 1857, as operárias têxteis de uma fábrica de Nova Iorque entraram em greve, ocupando a fábrica, para reivindicarem a redução de um horário de mais de 16 horas por dia para 10 horas. Estas operárias que, nas suas 16 horas, recebiam menos de um terço do salário dos homens, foram fechadas na fábrica onde, entretanto, se declarara um incêndio, e cerca de 130 mulheres morreram queimadas. Em 1910, numa conferência internacional de mulheres realizada na Dinamarca, foi decidido, em homenagem àquelas mulheres, comemorar o 8 de Março como "Dia Internacional da Mulher". De então para cá o movimento a favor da emancipação da mulher tem tomado forma, tanto em Portugal como no resto do mundo.
Em homenagem a todas as mulheres, principalmente à da fotografia, uma ligação ao youTube, com a extraordinária canção de Chico César: "Mulher eu sei".
Pablo Picasso - A mulher e o livro

"Mas, não "parece" possível - não sei como ainda consegues
escrever - diz uma mulher que irrompe súbita e
desestruturante como surgem as mulheres oráculos, peixes
vermelhos, talvez negros. A mulher de boca vermelha diante
dos punhos de um homem impaciente pelos astros. O homem
espantado com a sua própria ignorância - habituado a dizer
rudemente, contra a neve, eu quero; os seus punhos
descreviam círculos no ar e a mulher afiava punhais de amor,
enquanto se aproximavam de uma encruzilhada; a partir daí,
que os dados sinuosos decidissem sobre o futuro sorriso das
aves, das crianças, os dados que desde as antigas assembleias
dos bosques foram lançados contra a erva fofa e verde da carne
- e a mulher não entendia como era possível que ele
continuasse a escrever com a tempestade. Porque se fizera
silêncio, silêncio grave como num balanço da vida. E a violência
dos seus corpos era grandiosa e danificadora. Subterráqueos,
diziam que se amavam, em segredo. Mas as pequenas vilas não
perdoavam: o homem devia ser crucificado nas falas quotidianas
das tabacarias. Na última noite ficaram sentados, virados para
ocidente, num silêncio de meses, como se estivessem de novo
sentados, calados, com saladas e um copo de vinho".
Herberto Helder
.
Mulheres
Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas.

Elas brigam por aquilo em que acreditam.
Elas levantam-se contra a injustiça.
Elas não levam "não" como resposta quando
acreditam que existe melhor solução.

Elas andam sem novos sapatos para
suas crianças poderem tê-los.
Elas vão ao médico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.

Elas choram quando as suas crianças adoecem
e alegram-se quando as suas crianças ganham prémios.
Elas ficam contentes quando ouvem sobre
um aniversário ou um novo casamento.
Pablo Neruda
.
FRUTO
Camélia branca
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios
.
Este é o dia que ninguém te nega

.................
que acende a sílaba como um sol

.................que não fenece(s)
..............................os olhos.

João Rasteiro
http://br.youtube.com/watch?v=peT6w9zxKjo


quarta-feira, 5 de março de 2008

ANNA AKHMATOVA

(Горенко, 23 de Junho de 1889 - 5 Março 1966)
COMO PEDRA BRANCA
Como pedra branca no fundo do poço
dentro de mim está uma memória.
Nem quero afastá-la, nem posso:
é sofrimento e é prazer e glória.

Julgo que quem olhar-me bem de perto
dentro em meus olhos logo pode vê-la.
E ficará mais triste e pensativo
que alguém que escute uma anedota obscena.

Eu sei que os deuses metamorfoseavam
os homens em coisas sem tirar-lhes alma.
Para que o espante da tristeza dure sempre,
em coisa da memória te mudei.
Tradução de Jorge de Sena
A MULHER DE LOT
E o homem justo seguiu o enviado de Deus,
alto e brilhante, pelas negras montanhas.
Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:
Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar
as rubras torres da tua Sodoma natal,
a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,
as janelas vazias da casa elevada
onde destes filhos ao homem amado".
Ela olhou e - paralisada pela dor mortal -,
seus olhos nada mais puderam ver.
E converte-se o corpo em transparente sal
e os ágeis pés no chão enraizaram-se.
Quem há de chorar por essa mulher?
Não é insignificante demais para que a lamentem?
E, no entanto, meu coração nunca esquecerá
quem deu a própria vida por um único olhar.
Tradução de Lauro Machado Coelho
Anna Akhmatova
http://anaprs.blogs.sapo.pt/arquivo/400439.html
http://64.233.183.104/search?q=cache:d_Gxfve-pMkJ:br.geocities.com/jerusalem_13/anaakhmatova.html+poemas+de+anna+akhmatova,+recanto+das+poesias&hl=pt-PT&ct=clnk&cd=1&gl=pt

segunda-feira, 3 de março de 2008

"Um falcão no punho"

Faleceu hoje aos 76 anos, talvez, uma das mais reservadas e extraordinárias escritoras portuguesas do século XX, MARIA GABRIELA LLANSOL. E como refere, Eduardo Pitta, "provavelmente a maior prosadora portuguesa do século XX", alguém que terá inaugurado uma nova escrita na literatura portuguesa.
"Voz das mais secretas e discretas na literatura portuguesa contemporânea de difícil classificação porquanto a sua escrita quebra constantemente as fronteiras - em cada um dos seus livros ou no Livro único que pareceu escrever ao longo dos anos - entre prosa e poesia, ficção e diário, romance e novela. É de resto uma autora que poderíamos colocar sob o signo da fronteira"(IPLB).
Falecida esta madrugada, Maria Gabriela Llansol destacou-se na ficção contemporânea pela originalidade de obras como Um Falcão no Punho (1985, Prémio Dom Dinis), Os Pregos na Erva, O Livro das Comunidades, A Restante Vida, Um Beijo Dado mais Tarde(1987, Grande Prémio de Romance e Novela da APE, e Prémio da Crítica), Amigo e Amiga (2006, Grande Prémio de Romance e Novela da APE) e Lisboaleipzig.
Autora de uma poética extraordinária e muito singular, Maria Gabriela Llansol, era possuidora de uma escrita de grande qualidade, quer ao nível estético, quer filosófico, o que sem favor a coloca como um dos nomes mais marcantes da literatura portuguesa das últimas décadas. Alguém que, como disse Eduardo Prado Coelho, está no ponto em que «a escrita salva, redime, sustenta o bruxulear de uma luz, abre a vacilação de um caminho, e a literatura, essa, já começou a ficar para trás».
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"(...)bem-aventurados os alucinados, porque deles será o real
bem-aventurados os desiludidos, porque neles o pensamento se fará humano
bem-aventurados os corpos que morrem, porque deles será a sensualidade do invisível
bem-aventurados os desesperados, porque deles será a restante esperança
bem-aventurado sejas tu, ó texto, porque nos abres a geografia dos mundos
bem-aventurada sejas tu, ó Terra, porque tua será a explosão que levará o vivo a todo o Universo."
In, Ardente texto Joshua - Maria Gabriela Llansol

sábado, 1 de março de 2008

"no inclinar da clepsydra"

Faz hoje exactamente 82 anos que faleceu Camilo de Almeida Pessanha, poeta nascido em Coimbra no ano de 1867. O mais singular e original poeta simbolista português, aliás, o "único verdadeiro simbolista da literatura portuguesa e, em absoluto, um dos maiores intérpretes do Simbolismo europeu", nas palavras de Barbara Spaggiariapenas, viu publicado em vida o livro Clepsydra (1920), que reuniu o essencial da sua produção poética. Colaborador fugaz de vários jornais e revistas, viveu os últimos anos da sua vida afastado do convívio dos seus principais companheiros de letras, em Macau, repetindo os seus melhores versos "de memória", como gostava de sublinhar. Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro contaram-no entre os seus mestres, estabelecendo-se, através da sua obra, a ponte que em Portugal ligou simbolismo e modernismo.
Refira-se a carta que Fernando Pessoa lhe escreveu por volta de 1916, solicitando-lhe publicação de poemas: "Se estivessem inteiramente escondidos da publicidade, [...] seria, da parte de V. Exª., lamentável mas explicável. O que se dá, porém não se explica; visto que, sendo de todos mais ou menos conhecidos [...], eles não se encontram acessíveis a um público maior e mais permanente na forma normal da letra redonda. [...] sei-os de cor, aqueles cujas cópias tenho, e eles são para mim fonte contínua de exaltação estética. [...] é porque muito admiro esses poemas, e porque muito lamento o seu actual carácter de inéditos (quando, aliás, correm, estropiados, de boca em boca nos cafés), que ouso endereçar a V. Exª. esta carta, com o pedido que contém." O pedido era para que alguns poemas pudessem ser publicados na edição de Orpheu 3.
Apesar da pequena dimensão da sua obra, Camilo Pessanha é hoje considerado um dos poetas mais importantes da língua portuguesa.
A Morte, no Pego-Dragão
De onde vem este perfume de flores, embalsa-
mando a noite puríssima?
Entre bouças e fragas, uma cabana de ola, perto
da qual um arroio murmura...
Como de costume, o eremita parte ao surgir
a lua.
Em um covão do monte, um pássaro, poisado
ininterruptamente gorjeia.
.
Não lhe importa que as ervas, impregnadas do
orvalho, lhe encharquem as alpercatas de junça.
As suas vestes de ligeiro cânhamo, soergue-as,
enviezando, a brisa primaveril...
À borda da torrente, intento fazer versos ao
viço das orquídeas.
Embargam-mo as saudades, violentas empolgan-
do-me, do Kiang-pei e do Kiang-nan.
Camilo Pessanha