terça-feira, 30 de dezembro de 2008

2009

O extremo exercício da loucura
.

Escrevo como no princípio

atrás do inóspito silêncio da faísca

curvado para dentro

boca fechada a que se confinam os cicios

apocalíptica e múrmur

em seus desvarios de garrote

e mastiga-se a intrínseca mudez que corrói

esta triste e acirrada madrugada

.

o silêncio circunflexo apaga os nomes

sorvendo a luz das glicínias

até que o poeta é desmascarado

pelo extremo e assombroso vocabulário – sagrado

e profano como se as palavras florissem

seiva e sangue

e rubras filigranas na beleza física de Auschwitz.

.

Escrevo como no princípio visceral

da explosão vulcânica dos cílios

e escrevo como se a única contrição superlativa

fosse a sílaba muda da água

porque o coração do fogo engole-nos vivos

por infinitas extensões epifânicas – aí cega a boca

na entrega híbrida do altivo dialecto

.

agora o primórdio do canto

surge elíptico no busto das cimitarras da crisopeia

na paixão dos corpos suportados nas obreias

enquanto a parábola espera que ele se renove

e grafe a morte como libérrima cascata incandescente

sob o cristalino silêncio silvestre que engoliu Elias.

João Rasteiro

....................Nessum Dorma - Paul Potts.................


sábado, 27 de dezembro de 2008

NATAL IV

ORIGEM

Abrigo dezembro, não porque me traz Natal, a ilusão. Acolho dezembro,

porque em dezembro se alinham as palavras da ode ao novo ano,

porque em dezembro se resguarda a poesia a declamar para os-sem-pão.

Porque em Dezembro tudo se pinta de falso e céu estrelado.

Mas ..... eu ..... canto dezembro porque n’ele também se beija a terra

com a humildade maternal que protege o amor. Quem nasceu?
ANTÓNIO SALVADO
.........................................Então é Natal - Simone

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Natal III

NATAL À BEIRA-RIO


É o braço do abeto a bater na vidraça?

E o ponteiro pequeno a caminho da meta!

Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,

A trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.

Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!

E o Menino nascia a bordo de um navio

Que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!

Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.

E quanto mais na terra a terra me envolvia

E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me

À beira desse cais onde Jesus nascia...

Serei dos que afinal, errando em terra firme,

Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira - Obra Poética 1948-1988
..............
John Lennon - Happy Christmas (War is Over)

sábado, 20 de dezembro de 2008

NATAL II


Um dia será Natal
.
Um dia na alma do mundo será Natal...
.
Um dia as imagens do ancestral barro colorido
no meio do musgo iludido em sonhos de voracidade
aqueles onde se pressente o rosto da exactidão
conquistarão voz em seu extenso movimento
exigindo verdade e fé e não o oiro e a crua tradição
.
Um dia na alma do mundo será Natal...
.
Um dia imporão a demissão dos actores de ópera bufa
e guiadas por uma cadente e exuberante estrela
ressuscitarão as auroras pelo percurso físico das vozes
depois com os homens lançarão os sete livros às águas
em dádiva pura - Deus estará no céu e o verbo na terra
.
Um dia na alma do mundo será Natal...
.
"Há-de vir
..................um Natal
...................................e será
..............................................o primeiro"
em que o Natal dos homens em seu folclore será verdadeiro.
.
Um dia na alma do mundo será Natal...
Manuel de Cenáculo
...........................Boss AC - Uma carta ao Pai Natal

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Natal I

«NÃO CORTEM O CORDÃO»
.
Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho,
o cordão astral à criança aldebarã, não cortem
o sangue, o ouro. A raiz da floração
coalhada com o laço
no centro das madeiras
negras. A criança do retrato
revelada lenta às luzes de quando
se dorme. Como já pensa, como tem unhas de mármore.
Não talhem a placenta por onde o fôlego
do mundo lhe ascende à cabeça.
Linhas cristalográficas atravessando os cornos.
.
A veia que a liga à morte.
Não lhe arranquem o bloco de água abraçada aonde chega
braço a braço. Sufoca.
Mas não desatem o abraço louco.
.
A terra move-a quando se move.
.
Não limpem o sal na boca. Esse objecto asteróide,
não o removam.
A árvore de alabastro que as ribeiras
frisam, deixem-na rasgar-se:
- Das entranhas, entre duas crianças, a que era viva
e a criança do sopro, suba
tanta opulência. O trabalho confuso:
que seja brilhante a púrpura.
Fieiras de enxofre, ramais de quartzo, flúor agreste nas bolsas
pulmonares. Deixem que se espalhem as redes
da respiração desde o caos materno ao sonho da criança
exacerbada,
única.
Herberto Helder - (De «Última Ciência», Assírio & Alvim, 1988;in «O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses»,direcção, organização, prefácio e notas deJosé António Gonçalves, Funchal, 1988,Prémio-Galardão de Mérito da Cultura/SRTC/89)
.............................Hino à Alegria - Beethoven

sábado, 13 de dezembro de 2008

SEIVA

..............................................Paula Rego
Se a boca virar faca cortará os lábios
.
Há poucos anjos que chorem
muitos poucos lobos que uivem cegos como a flecha.
Acenderam-se as sombras. É o Inverno fervendo o poema
ao desconcerto geográfico das pétalas do gelo.
E enquanto a terra molda um cordeiro
para alimentar as ervas
a língua com suas cabeças prodigiosas - pulcras e cruéis
despertam os fantasmas brancos - os inocentes animais da melancolia
os que sucumbem iludidos pelo cheiro
das sílabas incendiárias
harmoniosas como as virgens flores da Primavera.
...........................- Húmidas, dobradas na nuca.

*

Eis um tempo absolutamente bárbaro
porque os embriagados demónios ou deuses das palavras
trabalham ferozmente treinando os prisioneiros como arquipélagos
pois os figos maduros apodrecem nos gonzos
que suportam a escrita dos labirintos. Saúdo-te detrás do sol e da lua
onde apenas refulgem as horríveis cores das metástases
linguísticas – as raízes carnívoras dos lugares
que se espalham aos corpos nativos de luz – sob aquela frágil
e descomunal oração de Pavese: virá a morte e terá os teus olhos.
E virá a sílaba alucinada e serás aniquilado
sob a aurora. As novas idades com o fogo dentro da boca dos lírios.
...........................- Adolescentes, perversas no beijo.

*

Onde guardar a benévola catacrese do espigão
o coração surgido como um ímpeto agachado na poética
do jogo acerbo e fundo
na boca que vira faca e corta os lábios no silêncio nu
ó insana quimioterapia de bem querer
colocar todos os sonhos no intrínseco sexo de oiro – a vida e a morte
em seu rizoma sagrado – num poema inapreensível e único.
João Rasteiro
...................................Paco de Lucia

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Dream and Hope

PAPÁ

Recostado na sua cadeira, uma cadeira larga e quebrada
E polvilhada com cinzas,
O papá passa os canais, toma outro
Cálice de Seagrams, simples, e pergunta
O que fazer comigo, um rapaz novo e verde
Que nem considera a
Falta de sentido do mundo, desde
Que as coisas se me tornaram fáceis.
Fixo os olhos na sua cara, um olhar
Que lhe afasta a testa;
Estou certo que ele não tem consciência dos seus
Negros olhos de água, estes que
Balançam em diferentes direcções,
E dos seus lentos e indesejados espasmos
Que demoram a desaparecer.
Oiço, aceno abertamente até tocar na sua pálida,
Camisola bege, gritando,
Gritando nos seus ouvidos, pendurados
Com lóbulos pesados; mas ele está a contar
A sua piada, e então pergunto-lhe por que
Parece tão infeliz, ao que me responde….
Mas eu não quero mais a porcaria da resposta, porque
Passou todo o tempo, e por baixo da
Minha cadeira eu tiro o espelho que guardei;
Eu rio-me, rio-me à gargalhada, o sangue escorre
Da sua cara até à minha, e cresce
Um pequeno lugar no meu cérebro, algo
Que deverá ser extirpado, como se fosse um
Caroço de melancia, com os
Dois dedos.
O papá toma outro cálice, simples,
Repara na pequena mancha de âmbar
Nos seus calções, igual à que eu tenho nos meus, e
Faz-me cheirar do seu cheiro, e este vem
Apenas de mim; ele passa os canais, recita um poema antigo
Que escreveu antes de a sua mãe falecer,
Levanta-se, grita, e pede
Um abraço, assim que eu encolho, com os meus
Braços mal conseguindo dar a volta
ao seu grosso e oleoso pescoço, e às suas costas largas; porque
Eu vejo a minha cara emoldurada na
Armação preta dos óculos do papá,
E descubro que ele também se ri.
Barack Obama - (publicado no jornal "Feast").
.................Bob Dylan - The Times They Are A-Changin

.
http://casadospoetas.blogs.sapo.pt/31913.html
http://bibliotecariodebabel.com/tag/barack-obama/

sábado, 6 de dezembro de 2008

Exalação

...........................Sebastião Salgado
1.

No íntimo do caos
o corpo flutua
no infinito desigual
dos últimos milénios
às vezes troca de morada
e na casca trémula da pedra
ensaia uma fuga abstracta
em volta do seu corpo
um poder feminino
o misterioso feminino que dizem
ser no mistério dos cânticos
uma pequena concha imortal.
4.
Na sedução do rosto onde ardem os lírios
no espelho em cuja solidão se vê o homem
um Deus reduziu a nada a memória que
por dentro do forro do linho se escoa.
João Rasteiro
In, Respiração das Vértebras (2001)
...................Janis Joplin - Piece of my heart

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

O Azul Irremediável

Álvaro Alves de Faria (Brasil, 1942). Poeta, ficcionista, ensaísta e jornalista. Autor de livros como, O Azul Irremediável (1992), Terminal (1999-2000) e À Noite, os Cavalos (2003). Em 2003, a editora Escrituras reuniu os seus 16 livros de poemas escritos até então, no volume Trajetória Poética. Mais recentemente, "zangado" com a poesia brasileira e com o próprio Brasil, publicou vários livros em Portugal, nomeadamente “20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções para Coimbra”, "Poemas portugueses", “Sete Anos de Pastor”, “A Memória do Pai”, "Inês" e “O Livro de Sophia”, que será editado brevemente. Como refere: "Portugal não influencia minha poesia. Portugal é a minha poesia de hoje. Sou um poeta português no Brasil". Talvez exagerando, ou simplesmente em grito de desespero, afirma ser hoje um “ex-poeta”no Brasil. Álvaro Alves de Faria, possui, para além de dois prémios "Jabuti de Imprensa" da Câmara Brasileira do Livro, em 1976 e 1983, pela sua "poiesis" no meio do jornalismo cultural e do prémio Anchieta para Teatro, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, com a peça “Salve-se quem puder que o jardim está pegando fogo”, o Prémio da Associação Paulista de Críticos Literários, por “Trajetória Poética”, como melhor livro do ano de 2003, o Prémio de Poesia da Academia Paulista de Letras, como melhor livro do ano de 2007, por “Babel”, e agora em 2008 foi integrado na Colecção Melhores Poemas, da Editora Global, que é o que de mais significativo existe na área da poesia no Brasil. Entre poesia, ficção, ensaio e literatura infantil possui cerca de 50 livros editados.
O Jornal Vagalume acaba de publicar uma grande entrevista ao poeta, para a qual foram convidados diversos escritores, ensaístas, poetas, jornalistas, críticos, professores universitários, etc. Do convite que me foi feito, seguem em baixo as minhas 3 perguntas inseridas na entrevista efectuada pela poeta e escritota Cida Sepulveda - a entrevista na integra, pode ser lida em:( http://www.jornalvagalume.com/50423.html ). No final, o poema "A pessoa certa" do livro "O Azul Irremediável".
(...)
7 - JOÃO RASTEIRO, poeta ,Coimbra, Portugal - JR - Quando olhamos para as palavras de Fernando Pessoa, claramente percebemos que poeta e poesia se confundem na indissociável amálgama da existência. Assim, como dissecar a afirmação do Álvaro, quando nos diz com uma certa simbiose de emoção e mágoa: “Fui buscar na poesia portuguesa o que me falta no Brasil”?ÁLVARO ALVES DE FARIA:É o que sempre digo em Portugal, meu caro João. Vou a Portugal buscar a poesia que me falta no Brasil. Literariamente, mais particularmente na Poesia, o Brasil é apenas uma mancha. O que ocorre atualmente por aqui é lastimável. Com toda sinceridade, nunca vi tanta arrogância e mediocridade juntas, misturadas. O que se produz, ressalvando sempre algumas exceções, é de uma fragilidade poética que assusta. E tudo amparado por um jornalismo cultural sem compromisso com nada. Gente que não presta mesmo. Gente que não presta é o que não falta no Brasil. Na área da poesia é uma guerra de vaidades. A mediocridade se mede por aí. O país é isto que sou obrigado a engolir todos os dias. Este é um país sem sorte. Um país à deriva. O poeta e a poesia se confundem mesmo na amálgama da existência. É assim, acredito nisso. Portanto, sou assim. Não dá para mudar a esta altura da vida. E não mudaria mesmo. Voltarei sempre a Portugal, para ter a certeza de que a poesia ainda existe em algum lugar do mundo. No Brasil eu sei que isso não é mais possível.
JR - Tendo em conta a sua relação visceral com a escrita em geral e com a poesia em particular, sendo Álvaro Alves de Faria um único “corpus” – poeta e cidadão -, como encara o Álvaro a poesia dos poetas que são colocados em patamares antagónicos, quando falamos da dialéctica obra/autor e homem/cidadão, como é exemplo bastante elucidativo Ezra Pound, ou tendo como suporte a obra de Michel Foucault – “O que é um autor?”
ÁLVARO ALVES DE FARIA: Um autor é ele mesmo, se ele for honesto consigo. Sou, sim, poeta e cidadão, uma única coisa. Sou uma só coisa. Uma única coisa. Embora o cidadão seja de quinta categoria, que é o meu caso, o poeta tenta se preservar, tenta viver no seu poema, na possíbilidade que ainda lhe é possível. Ezra Pound era fascista, mas isso não se pode falar. É proibido. A patrulha está de olho. Mas era fascista. Não separo a obra do autor. O autor e a obra têm de ter a mesma dignidade. Para falar de Ezra Pound eu aconselho ouvir os concretistas. São artistas gráficos sofríveis. Não separo a obra de seu autor. Às vezes, sinceramente, até tento, caso de Borges, por exemplo. Era um ser humano desprezível, mas com uma obra grandiosa. Voltando ao final de sua pergunta: um autor é ele mesmo, se tiver, mesmo, consciência de seu papel. Fora disso, é um lixo.
JR - “A poesia não serve para nada, não se compra pão com palavras, mas não se vive sem ela. O dizer poético é a dimensão amplificada da crise do humano. Não acalma. Ao contrário, nos mostra o quanto ao vivo é muito pior”, afirma o poeta Ricardo Aleixo. Perante tal afirmação, como continuará a poesia a interagir e desafiar o poeta Álvaro Alves de Faria e como interagirá esta com este nosso mundo de crescentes “jardins”, como o silencioso Darfur, Bagdá, Gaza ou Tibete.
ÁLVARO ALVES DE FARIA: O poeta Ricardo Aleixo tem razão. O que diz é correto. Mais do que correto. Não se vive sem a palavra, embora a palavra seja assassinada todos os dias. Mas não se vive sem ela. Eu costumo ficar 72 horas sem falar nada, mas as palavras existem dentro de mim. Falo por mímica com as pessoas. É o melhor. A poesia é mesmo um desafio. Ser poeta, especialmente no Brasil, é estar numa trincheira 24 horas por dia tentando não ser morto por ninguém. Embora a poesia mate o poeta a cada minuto da vida. “O dizer poético é a dimensão amplificada da crise do humano”, diz Ricardo Aleixo, com razão. Digo mais: a crise do ser humano não tem mais tamanho. É o todo. É o tudo. É o tido. É o que ainda resta. A poesia é só o pequeno alento ainda possível. É a faca que corta fundo e dilacera também. A poesia é o que machuca mais. Não é para amadores, muito menos aventureiros. E de amadores e aventureiros poetas o Brasil está cheio. A gente tropeça neles. E viver nesse mundo com os “jardins” a que você se refere é uma tortura diária, é a ferida que não fecha, é o grito que não cala. Mas, antes de tudo, é preciso viver. Não se trata de uma frase poética, não. É preciso, apesar de tudo. Apesar do mundo.
(...)
.
[A PESSOA CERTA]
A pessoa certa atravessa
a rua com seu terno branco
gravata de seda italiana.
A pessoa certa
executiva de si mesma
atravessa a praça
com sapatos pretos
meias de náilon norte-americanas.
A pessoa certa entra no prédio
recolhe dinheiro
cola na pasta
pega o elevador.
A pessoa certa
atravessa o hall
chega à porta giratória.
A pessoa certa
põe o pé na calçada
e cai fulminada
sem saber por quê.
In, O Azul Irremediável (1992)
...................Tanto Mar - Chico Buarque