terça-feira, 29 de julho de 2008

Viagens, rotas e destinos IV

MAR
Ondas que descansam no seu gesto nupcial
abrem-se caem
amorosamente sobre os próprios lábios
e a areia
ancas verdes violetas na violência viva
rumor do ilimite na gravidez da água
sussurros gritos minerais inércia magnífica
volúpia de agonia movimentos de amor
morte em cada onda sublevação inaugural
abre-se o corpo que ama na consciência nua
e o corpo é o instante nunca mais e sempre
ó seios e nuvens que na areia se despenham
ó vento anterior ao vento ó cabeças espumosas
ó silêncio sobre o estrépito de amorosas explosões
ó eternidade do mar ensimesmado unânime
em amor e desamor de anónimos amplexos
múltiplo e uno nas suas baixelas cintilantes
ó mar ó presença ondulada do infinito
ó retorno incessante da paixão frigidíssima
ó violenta indolência sempre longínqua sempre ausente
ó catedral profunda que desmoronando-se permanece!
António Ramos Rosa

sábado, 26 de julho de 2008

Viagens, rotas e destinos III

A casa do mundo
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Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.
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Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.
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Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.
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Luzindo cheguei à porta.
Interrompo os objectos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.
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Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.
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É a casa do mundo: desaparece em seguida.
Luiza Neto Jorge, "O seu a seu tempo"

terça-feira, 22 de julho de 2008

Viagens, rotas e destinos II

Mar
Nunca conseguiu viver longe do mar.
A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer.
Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos, o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.
Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzi-Bar", julgou ouvir o mar que perdera na voz dum jovem marinheiro grebo. Mas não, o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha, era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos e à lassidão embriagante do sol e do vinho.
Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco: "onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar" e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento coração das leoas em pedra.
Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher, acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente o que ela lhe disse ao separarem-se:
- Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.
E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país. Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos, a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul, com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido, em lugar incerto, a meio da sua vida.
Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo, e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde, por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens e da pobreza do mundo.
Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou. Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse, e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.
Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.
Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens, tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo, que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas.
Nunca mais o lembraremos
Um dia, em frente ao mar, ele pensou:
Se me apagasse neste preciso instante, o mundo pouco se importaria com isso. No entanto, deixaria de ser o mesmo: seria um mundo com todas as coisas que conheci e toquei, mas sem mim. E eu, algures na morte, é pouco provável que levasse comigo alguma coisa do mundo. Seria um homem morto, sem mundo, definitivamente só.
Depois, não lhe agradou saber que o mundo, apesar da sua morte, conservaria por muito tempo os vestígios da sua passagem. Desejou, uma vez mais, que tudo o que escrevera até àquele instante se apagasse também, e que do seu nome não restasse uma sílaba.
Pensou em tudo isto sem amargura, porque havia nele dois mistérios insolúveis: viver e escrever. E ambos estavam tão intimamente ligados que, provavelmente, se conseguisse desvedar um deles, o outro sê-lo-ia também.
Mas acontece que tinha tentado fazer da sua vida uma obra tão intensa quanto a obra escrita. Por vezes diluiam-se uma na outra, confundiam-se, tão próximas ou afastadas estavam. E tanto na vida como na escrita, um mesmo desejo o animava: caminhar em direcção à sabedoria última do silêncio - a memória total do mundo.
O pior é que sempre que avançava alguns passos na direcção certa, desiludia-se. A harmonia com o mundo e com o seu próprio corpo continuava inacessível; e outras ignorâncias surgiam, oturas trevas o cegavam. O que parecia estar perto, repentinamente, ficava fora do alcance.
Apesar de tudo, com o avançar lento da idade pressentia, algures dentro de si, um ser de lume - um anjo mudo que o iluminava, revelando- lhe aquilo que devia ou não silenciar.
E quando esse ser o fazia sentir árvore ou pássaro, todo o talendo da árvore e o nocturno voo do pássaro escorriam em si. E se a sensação de mar lhe era transmitida, ele sabia que era um mar muito mais remoto e vasto que aquele que diante de si se movia.
Respirava fundo, tinha medo, e escrevia como uma condenação - e nessa condenação encontrava um breve alívio para a dor das coisas vivas e mortas que o rodeavam. E o corpo, sempre apaixonado, tremeluzia quando o estranho anjo mudo lhe punha uma voz no coração.
Talvez seja por tudo isto que um dia nunca mais o lembraremos, nunca mais. Mas neste preciso instante ele acabou de acordar, abre os olhos, arde, é jovem ainda, e diz-me a sorrir:
- Aqui tens o inocente revólver para a eternidade.
Al Berto, "O Esconderijo do Homem Triste", O Anjo Mudo.

sábado, 19 de julho de 2008

Viagens, rotas e destinos I

Sumário Lírico
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Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças,
começo devagar a reescrever o mundo quedo
que é o único que conheço e vivo, sei e de cor vejo.
Ninguém me deu outras formas que não minhas
mas deram-me todos juntos o cerne das palavras.

Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa.
E recordo-me dos outros de fora da vidraça, mudos
mas autores cada um no seu frasear, generosos
quando me reconheciam em muitos anos de vida.
Devedora sou, mesmo dos idos, de exangues vozes

caladas para sempre nos livros em que as lera.
Em tantas vidraças que espelharam caras, olhos
de cada olhar de imagens próprias de cada um.
Estava no longínquo fundo o mar redito, o sol,
os barcos na Barra, que também em vidros estavam.

Passa tu, golfinho, piloto cego, depois cadáver,
que talvez me conduzisse entre os barcos da Barra,
quando o dorso de prata e o gume passavam
nas horas visuais das manhãs de Junho e Julho minhas,
de par em par o olhar aberto ao ar do sol do sal.

Imagens que sempre ficais nestas vidraças,
emprestai vosso vidro e revérbero à luz
do farol extinto, em outras vidas que antes
narravam que eu era já nascida,
quando vos vi, farol, e vos guardei, imagens.

A cor de prata dos vultos é hoje negra, manchas
com a noite embebida, tantas vezes co-substancial.
É assim que a vidraça anoitece diante dos olhos,
diariamente somando anos, minutos indivisos.
Mas, cisco no vidro, pela lei da perspectiva, ponto.
Fiama Hasse Pais Brandão

segunda-feira, 14 de julho de 2008

LIVROS

É Verão. As férias destabilizam-nos os sentidos e todos os espigões do corpo. Mas os livros continuam a sua incomensurável loucura de nos procurar mostrar uma forma outra da palavra inicial. E eu que me preparo para dentro de algumas horas partir uns dias à procura da descoberta de alguns territórios de Portugal, mas, essencialmente, à descoberta de mim e do caminho de espinhos que preciso percorrer para alcançar o cume das árvores, quero só chamar a atenção para dois livros, um que me acompanhará em viagem e outro que mais tarde espero ler.
O primeiro é o novo livro de valter hugo mãe, hoje já uma presença importante na ficção portuguesa contemporânea. No seu novo livro, "O Apocalipse dos trabalhadores", já a determinar que os dedos o aprisionem e apertem nas livrarias e Fnacs do país, apenas constatamos os predicados que lhe propiciaram em 2006 o prémio "José Saramago" com o romance "o remorso de baltazar serapião". Como é referido na contracapa do livro: "o apocalipse dos trabalhadores é um retrato do nosso tempo, feito da precariedade e dessa esperança difícil. um retrato desenhado através de duas mulheres-a-dias, um reformado e um jovem ucraniano que reflectem sobre os caminhos sinuosos do engenho e da vontade humana num portugal com cada vez mais imigrantes e sobre a forma como isso parece perturbar a sociedade.»
O segundo livro é "O Polvo não sabia que o Mexilhão tinha asas". Este livro de contos de Maria João de Oliveira, que será apresentado na Casa Municipal da Cultura de Coimbra, sábado, dia 19/07/2008, pelas 15h30, é um livro de alguém que afirma tratar-se de "uma viagem interior que não pode ser adiada" e para quem escrever é tão necessário como respirar, numa relação absolutamente visceral com a escrita e os problemas do mundo que nos rodeia e asfixia. Como refere no prefácio, o poeta José Félix, "a autora serve-se da memória como acepipe para a construção da trama, ficcionando a realidade, e fazendo da ficção uma coisa real. (...) para tear, palavra a palavra, frase a frase, os ardis da vida, servindo-se quer da ficção feita realidade quer da realidade feita ficção".
Na mesma sessão, e porque os livros emergem como o dilúvio, será lançado ainda o livro "A força de um sonho" de Maria Rita Romão.
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Resistência - Amanhã é sempre longe demais

sábado, 12 de julho de 2008

PABLO NERUDA

Pablo Neruda - (Parral, 12 de Julho de 1904 Santiago, 23 de Setembro de 1973) foi um poeta chileno premiado com o Nobel de Literatura de 1971 e um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX. Tinha obrigatoriamente como lema de vida: "A verdade é que não há verdade".
Uma leitura
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entre as orquídeas e o trigo
que preferência confere
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a uma só flor tanto luxo
e ao trigo (cal) ouro sujo?
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se é doce a água dos rios
de onde tira sal o mar?
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e não naufraga o navio
vogando em vogais demais?
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quem fornece nomes-numes
ao inocente inumerável?
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a intradução dos idiomas
conciliará pari pássaros?
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é possível florescer
sobre um deserto de sal?
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quando já se foram os n(ossos
quem vive no pó final?
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terei meus cheiros-o-dores
quando dormir destru... ido?
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quem era (hera?) te amando
que o sonho encampa dormindo?
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será uma estrela-in-visível
(talvez?) o céu dos suicidas?
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e por que o céu-in-vestidos
se encerra com suas neblinas?

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como se chama a tristeza
numa ovelha sol-it-ária?
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moscas fabricando mel
ofenderiam as abelhas?
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há espaço para uns espinhos?
(alguém pergunta à roseira)
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por que é tão dura a doçura
do coração das cerejas?
Pablo Neruda
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http://www.neruda.uchile.cl/
http://www.fundacionneruda.org/
http://br.geocities.com/edterranova/nerudapoe.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

quarta-feira, 9 de julho de 2008

VERBO

O Mito da Criação

O poeta criou um Deus,
criou-o lentamente
à imagem do barro ancestral,
ele os criou deus e poema:
arrasai todos os peixes do mar,
todas as aves dos céus e
todos os animais sem dentes
e criai sem blasfémia um verbo
outro, excêntrico.
De madrugada, nu e alucinado
sobre o orvalho comeu-se a
si mesmo
e ressuscitou inteiro.

João Rasteiro

Luciano Pavarotti
- Nessun Dorma

domingo, 6 de julho de 2008

"A terra dos sonhos"


A trompete de Bagdad

....................................Ao Ehren Watada

A tua crença estava só na morte e tocava. E

continuava sonhando e tocando. E a garganta

era inútil como a garra de um leopardo murado

na cidade sagrada onde se perdiam as sombras.

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A morte não conseguirá abraçá-la. Como a pele

de um tigre de Bagdad perfumando as lágrimas

cheio de crias recentes. Eu era um corpo diáfano

incluído no exílio sempre aniquilado dos proscritos.

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E a tua crença de trompetista puxou pelas mãos

a morte de Chang a morte como todos os mortos

que se esquecem. Como se a povoassem opulentos

olhos de animais que te aguardam em Central Park.

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Há um oásis tumular dentro da terra. Um cadáver

insepulto sob uma salva divina de crenças e gélidas

promessas. Ouve-se apenas o gemido dos mortos

perfeitamente mortos em Bagdad sobre o orvalho.

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Restam ainda os cânticos doídos do trompetista nu

iluminado agora por fulminantes súplicas putrefactas.

João Rasteiro

New York New York - Frank sinatra

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Na geografia do tempo


Biografia

E tudo ocorre na melancolia
da sílaba, o casulo emergindo
nas talhas.
Inquieta sofre a gestação
no caule dos rebentos.
O gesto do corpo
no linho que se alinha à mutação.
Rota, sopro, sístole ou máscara
onde bardos fecundam a sazão
da ebriedade.
E entra nas vozes,
nos hortos, algures no inabitado
onde gravitam tâmaras.
Melífaga
ironia das fábulas, a palavra
mastiga a água adubada
ser bardo
é tocar o fogo
é estar no correr das águas da tempestade
O espectro desatando-se
sílaba que afeiçoa os matizes do
espanto cheio de luz.
Então nu.
João Rasteiro - 03/07/2008

HUMANOS - Quero é Viver

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http://fotoseliteratura.blogspot.com/

quarta-feira, 2 de julho de 2008

"H/Á" geografia do tempo (***)


(A)ntera
.......Pra ti...

16.
eu (itinerá)rio
da loucura do verbo ousar(-te)
o meu desejo lírico e alquímico
(n)o espaço dos animais
cheios de luxúria
a palavra (che)ia do seu espaço
a partir do deserto das violetas
civilizei a língua
e foi reposta em cada língua

que perdura na boca
a saliva que se move na língua
metamorfose(Ada) em sua raiz visível
porção terminal do estame da(s) flor(es)
(e o desejo é monstruoso no desejo
de te ousar ousada?)
João Rasteiro - 02/07/2008
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.(***)
http://www.youtube.com/watch?v=Glnm3aKwIwg&feature=related