sábado, 31 de dezembro de 2011

Um excelente (?) 2012



 Elegia do Queixume

5.

Para que alguns queixumes
sejam imaculados na intimidade da boca,
permanece entre os alucinados.
Eles são os justos,
os que como as aves marinhas
pousam sobre as águas a carga da palavra,
o repouso difícil de nomear
pois dele se extrai toda alegria do pranto.
Regiões de um dúbio preciso: a poesia
ondulando transversalmente
a uma nebulosa de sangue e mel,
exposta sempre à ímpar utopia do mundo.
Para que alguma coisa
agrida o corpo onde cintilam os reflexos
e me retorne fragmento sem rasto ou cheiro.
O imaculado clarão
na circulação do sangue
dos que partiram antes da chegada.
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.........................................................João Rasteiro
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sábado, 24 de dezembro de 2011

ESPAÇOS


O Órfico discurso do Natal


Ele entranha-se pelas paisagens do sol
pelos olhos das aves em que adejamos o incomensurável,
aconchega-se às nossas vísceras mais íntimas
e pressentimos que podemos ser criaturas de Dezembro,
criaturas dos dias de não se ser esquecido
criaturas fervilhando lava pelos dedos
em circunstâncias estranhas,
também nós concebidos e destruídos sem porquê
por essa sitiada substância
de que é erigida a adusta boca das quimeras.


Ele mergulha pelos corpos da terra
pelas frestas dos oceanos em que expurgamos a cegueira,
acerca-se inevitavelmente do nosso funesto alento
e intuímos ser os guardiões dos salmos da bem-aventurança,
guardiões que vigiam as infâncias no Inverno
guardiões fascinados pela loucura do mundo
em noite de tamanha abundância,
vínculos em que espargimos e aduzimos a púrpura
numa criança indefesa
de que se constrói uma humanidade que não há.


Ele submerge pelo avesso dos corações
pela estreita extensão das vozes sem tempo nem vento,
encosta-se no reflexo dos sonhos intemporais
e de forma desumana reinventa o natalício choro e riso
para que não se suspenda a esperança
e vergamo-nos trespassados no órfico cântico do poeta:
não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho!
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..................................João Rasteiro (Natal de 2011)

sábado, 17 de dezembro de 2011

Cesária Évora: 27 August 1941 - 17 December 2011



13.

Eu pressenti-te
rosto de terra fresca.
Quase lhe rocei…
.
           João Rasteiro
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domingo, 11 de dezembro de 2011

DESTINOS

Elegia de Afonso

VI

Porque nunca haverá paz
para aquele que ama os surdos ecos
seu dever é rasgar corações, furtar e matar
seu profícuo devaneio
e deleitar o mundo, quebrar as hastes,
aterrorizar e calcinar
o eixo, a flor, a ave, a nascente, a ordem, em que o sol
somente abrase os lugares vacilantes do altar
onde não se use o coração
pois se o destino é amar em condição
ávidos cruéis e infiéis serão os homens
escravos de um amor de maldição.
Reconhecerá o corpo, o sangue, a pele
a lágrima em seus recantos
e apagar-se-á a luz sobre esta terra
que ousará coisas que nem se crê pranto
pois ela Inês, fêmea maldita
que olhas, tinhas do seu quebranto
na chão fecundo, no verde campo arrastando
os primitivos corpos
germinará para sempre o seu amaldiçoado canto.
Noite alargada à eternidade
contemplando o rosto gentil que escurece
até que o fulgor da morte se torne exílio
e o júbilo dos algozes que é Portugal
de Pêro, Álvaro e Diogo
em fogo para um contentamento porventura ausente
que as lágrimas derramadas
são uma grade, fervores, tormentos
de alucinação se o não fosses
rei esquivo e sempre adiado
viverias sobre o seu peito seu perdimento.

................In, ELEGIAS, 2011 ---  João Rasteiro

sábado, 3 de dezembro de 2011

LUGARES

                                                           Ouro sobre azul " Seixas Peixoto
          
Biografia II

E tudo ocorre na melancolia
da sílaba, o casulo emergindo
nas talhas.
Inquieta sofre a gestação
no caule dos rebentos.
O gesto do corpo
no linho que se alinha à mutação.
Rota, sopro, sístole ou máscara
onde bardos fecundam a sazão
da ebriedade.
E entra nas vozes,
nos hortos, algures no inabitado
onde gravitam tâmaras.
Melífera
ironia das fábulas, a palavra
mastiga a água adubada,
ser bardo
é tocar o fogo
o espectro desatando-se
sílaba que afeiçoa às matizes do
espanto cheio de luz.
Então nu.   
            
                                João Rasteiro 

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

ESPAÇOS


Esta sexta-feira, dia 25/11, pelas 21h30, estarei no Museu Moinho das Lapas [Biblioteca Anexa Municipal de Cernache] para apresentar a minha poesia e dialogar com o público presente. Na sessão, ou melhor dizendo, na tertúlia, participarão ainda Kátia Carrasqueiro (acordeonista) e Anunciação Matos (ilustradora e dinamizadora). O magnífico trabalho que se vê aqui é da autoria da Anunciação Matos e foi feito a partir da leitura do meu livro "Pedro e Inês ou As madrugadas esculpidas". O evento é da responsabilidade do Departamento de Cultura - Divisão de Biblioteca e Arquivo da Câmara Municipal de Coimbra.
A quem puder e quiser  comparecer desde já o meu obrigado e tentaremos todos que não seja um tempo mal passado. Pelo menos tentaremos.

domingo, 20 de novembro de 2011

ROTAS INEXORÁVEIS


Elegia de Bashō

2.

Carne. Este corpo desnudo,
ninguém já o retalha,
salvo a estirpe do osso!


9.

Arquitectura de maldições
entre o olfacto e a utopia.
A inflorescência do golpe.


13.

Eu pressenti-te
rosto de terra fresca.
Quase lhe rocei…
                              João Rasteiro

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

CÂNTICOS


A litania da ausência
                              
                                 e depois os pássaros irão
                         povoar de ti novas ilusões
                                                  Ruy  Belo


Falta-me a pureza do ar
nas obscuras palavras do meu país
e nas viscerais margens de um país,

e entrementes foi espigando o desamor
que a flor também desperdiçou
o meu desamor foi espigando desumano
em ufano país de lúcida quietude
enclausurado numa túnica de impuro sangue
enquanto os animais perduram
na mais recôndita paisagem das chuvas.

Falta-me o fingimento do verbo
nos obscurecidos poemas da minha plebe
e nos íntimos litorais de uma plebe,

falta-me a artificial puridade de Ruy Belo
indicando-nos a sua e nossa simetria de morte,
              
a mais galopante simetria de morte de um país.
                                                                João Rasteiro                                                                    

terça-feira, 1 de novembro de 2011

ELEGIAS

Enquanto o meu livro "Tríptico da Súplica", editado pela ESCRITURAS Editora de São Paulo, Brasil, se prepara para ver a luz dos dias brasileiros, é já no próximo sábado, dia 05 de Novembro, que pelas 17h00na livraria "Miguel de Carvalho - livreiro antiquário", sita na Rua do Adro, nº 6, Coimbra, (nas traseiras da Igreja de S. Bartolomeu, perto da Portagem, na Baixa de Coimbra), se procederá ao lançamento do livro de poemas ELEGIAS. Esta obra é uma edição DEBOUT SUR L'OEUF confinada a 77 exemplares numerados e autografados pelos criadores, João Rasteiro (poesia) e Rik Lina (desenho e pastel), dos quais 7 exemplares ostentam um desenho original a tinta da china e um poema manuscrito. 
A apresentação será efectuada pelo Prof. Doutor ALBANO FIGUEIREDO da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Haverá ainda uma leitura de excertos da obra pelo poeta JORGE FRAGOSO. Esta apresentação antecede a inauguração da exposição "LIANA" do artista plástico holandês, Rik Lin.
A todos os que puderem e quiserem comparecer lá vos aguardaremos com a maior satisfação e alegria.




  Elegia V

E se aquele que amam será pó,
aqueles que ele ama e protege em sua coroa
onde não se propaga sua certeza,
ajoelham e dizem:
ama-nos. E ele em sua crua incerteza,
ama-os, matando.
Ele arranca o elmo e a armadura
de suas infinitas feridas brotando espinhos
alma dura armada pelo fogo
que sempre lhe roubou o que não tinha
a alma amada que agora desfalece
e oferece-a ao povo que não vê
um desmesurado amor sem porquê.
E se de ele geme o peito,
no peito que geme seu adeus,
então dizem-lhe que a Portugal o céu abriga
e que reze e sonhe um outro verbo.
E ele também morre e atravessa
de uma aurora para outra
o breve engano que poderia ter
a flor que um homem, pai ou soberano
em trágico desengano
nem em mil sonhos aquela alma que fenece
os deuses, as águas e a sílaba candente
consentiriam tal encanto
pois temerosa ousadia e pena ausente
só algum poeta incandescente
em sublime canto
num país seu nome ou pátria sua
cantaria o apartado amor em dor presente.
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sábado, 22 de outubro de 2011

TRÍPTICO da SÚPLICA



No meio de tanta incerteza e tristeza com este pobre país à beira mar plantado, são estas pequenas alegrias e, porque não dizê-lo sem falsos pudores, pequenas vitórias, que nos (me) vão dando alguma força e conforto, e falo do meu novo livro, que no princípio de Novembro estará nas livrarias no Brasil. 
Este "Tríptico da Súplica" é um livro [reúne três livros: "Diacrítico", "A Divina Pestilência" e "No Prelúdio das Rezas Pagãs" - os dois primeiros são os meus mais recentes livros editados em Portugal] que é editado pela editora "Escrituras" de São Paulo, na sua colecção "Ponte Velha", que é apoiada pelo Ministério da Cultura de Portugal e pela Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas (DGLB/Portugal).
Esta é uma colecção com cerca de quatro dezenas de obras já publicadas (essencialmente de escritores portuguese, mas também escritores dos países lusófonos), que inclui nomes como António Ramos Rosa, Nuno Júdice, Pedro Tamen, Luiza Neto Jorge, Ana Hatherly, Rosa Alice Branco, Luís Pacheco, Corsino Fortes, Maria João Cantinho, Fernando Echevarría, José Luís Tavares, Olinda Beja, Casimiro de Brito, Maria Estela Guedes, João Barrento, Maria Teresa Horta, Fernando Guimarães, Artur Cruzeiro Seixas, Fernando Aguiar, António Barahona, Pedro Proença, etc. 
Brevemente darei mais notícias sobre o livro e algumas actividades relativas à edição e/ou lançamento  do mesmo.


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http://www.escrituras.com.br/ponte.htm

domingo, 16 de outubro de 2011

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CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Podereis roubar-me tudo:
As ideias, as palavras, as imagens,
E também as metáforas, os temas, os motivos,
Os símbolos, e a primazia
Nas dores sofridas de uma língua nova,
No entendimento de outros, na coragem
De combater, julgar, de penetrar
Em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
Suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
Outros ladrões mais felizes...
Não importa nada: que o castigo
Será terrível. Não só quando
Vossos netos não souberem já quem sois
Terão de me saber melhor ainda
Do que fingis que não sabeis,
Como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
Reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
Tido por meu, contado como meu,
Até mesmo aquele pouco e miserável
Que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há - de ser buscado,
para passar por meu, E para outros ladrões,
Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
                                             Jorge de Sena

sábado, 8 de outubro de 2011

"A ÁRVORE E A NUVEM"


O Nobel da Literatura 2011 foi atribuído ao poeta Sueco  Tomas Tranströmer.  Como alguém já referiu, terá sido um Nobel em que se podera falar do triunfo da poesia. O poeta, que em Portugal é quase um desconhecido, tem poemas publicados apenas em duas antologias. Uma delas, da década de 80, publicada pela Vega, intitula-se "Vinte e um poetas Suecos". Foi coordenada por Ana Hatherly e Vasco graça Moura e a tradução dos 21 poetas esteve a cargo de Almeida Faria, Ana Hatherly, Vasco Graça Moura, Casimiro de Brito e Teresa Salema. Esta antologia foi apoiada pelo Svenska Institutet de Estocolmo e pelo P.E.N. Club Português.


Nesta antologia Tomas Tranströmer tem os seguintes poemas: "As Pedras", "Aquele que acordou com o canto sobre os telhados", "Kyrie", "Allegro", "Lisboa", "O Casal", "Quando a neve derreteu 66", "Citoyens" e "Montes negros". É já uma raridade esta antologia? É. E eu tenho a felicidade de a ter.


Do que li dele, de alguma forma, ainda pouco, parece-me um excelente poeta. Como Tomas Tranströmer escreveu: "Farto de todos aqueles que com palavras fazem palavras mas onde não há uma linguagem; /Dirigi-me para a ilha coberta de neve. /A veação não conhece palavras. /As páginas em branco dispersam-se em todas as direcções. /Eu dei com vestígios de cascos de corça na neve. /Linguagem, mas nenhuma palavra. / -


Será isto o objectivo da poesia? Será isto o grito da poesia? Talvez, talvez seja mesmo.


Da antologia "Vinte e um poetas Suecos", os poemas, "As Pedras", tradução de Teresa Salema e "Lisboa", tradução de Vasco Graça Moura.

As Pedras


As pedras que lançamos, ouço-as
cair claras como o vidro pelos anos fora. No vale
voam agitados os gestos do momento
gritando de copa em copa, calando-se
ao fino ar desse momento, deslizando
como andorinhas de cume
para cume até alcançarem
os planaltos extremos
ao longo da fronteira da existência. Aí caem
claros como o vidro
os nossos actos
ao encontro apenas do chão
que nós próprios somos.

Lisboa


No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas calçadas íngremes.
Havia lá duas cadeias. Uma era para ladrões.
Acenavam através das grades.
Gritavam que lhes tirassem o retrato.

“Mas aqui!”, disse o condutor e riu à sucapa como se cortado ao meio,
“aqui estão políticos”. Vi a fachada, a fachada, a fachada
e lá no cimo um homem à janela,
tinha um óculo e olhava para o mar.

Roupa branca no azul. Os muros quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde perguntei a uma senhora de Lisboa:
“será verdade ou só um sonho meu?”



http://ibnlive.in.com/news/literature-nobel-for-swedish-poet-tomas-transtromer/190656-40-100.html
http://www.poets.org/poet.php/prmPID/1112
http://en.wikipedia.org/wiki/Tomas_Transtr%C3%B6mer
http://www.pennilesspress.co.uk/prose/transtromer.htm

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

ROTAS

O já famoso Poemário que a Assírio e Alvim publica religiosamente à vários anos e que, religiosamente alguns coleccionam de forma fervorosa, e que em 2011 surgiu [para contentamento de uns e, para desgosto de outros] com capas duras, não deixa de ser, de continuar a ser, essencialmente, uma excelente antologia de poesia, para mais, a preço extremamente convidativo.
Aqui fica um dos poemas do POEMÁRIO, o poema "POÉTICA", de Fiama Pais Brandão:
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A luz e a treva que mostram o
prodígio. A literatura muda
que nasce do fundo do silêncio. Alfa e
ómega ou a manhã e a noite.
Seres feitos de matéria e pensa
mento feito de memória. Aqui

o verso repousa na sua figuração.
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.................In, POEMÁRIO, Assírio e Alvim, 2011
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domingo, 25 de setembro de 2011

ROTAS



Ela pisa o mundo com a sua sombra,
ela executa a lágrima com as trovoadas
entre a castidade e o remorso
alastra nas cordas de um pulmão espesso.


E o aroma varado do fólio branco
de um poema enjeitado e ainda em ferida
entranha o amor consumado em clarões
porque o mundo é agora a cabeça acerba.


Quando sob o canto dos grifos se viu nua
mergulhou fogosa no limiar da intimidade.
..................................................João Rasteiro
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