sexta-feira, 16 de julho de 2010

STOP - "O MAR"

Agora que umas merecidas férias aportam e o odor do mar já me extasia, ajudando a preparar um segundo semestre de 2010 de grande intensidade, mas simultaneamente bastante aguardado, uma vez que a uma nova habitação (ainda em permanente "instalação") sucede o ansiado e sonhado projecto "A Casa da Escrita", que a Câmara Municipal de Coimbra (e especialmente o seu presidente Dr. Carlos Encarnação) decidiu ousar pensar e "ofertar" à cultura de Coimbra.
E tendo sido eu uma das pessoas em quem decidiu confiar, não só para apoiar o seu Director, Prof. Dr. José Carlos Seabra Pereira (meu "velho mestre" de Teoria da Literatura na Faculdade de Letras - U. C.), mas essencialmente para que o novo espaço seja na verdade um recanto da cultura em Coimbra (prestando aliás tributo ao seu antigo proprietário, o poeta João José Cochofel, falecido em 1982), espero que todos, na pessoa do Sr. Presidente da Câmara, possamos fazer daquele espaço aquilo que ele merece ser, e sobretudo, que Coimbra, a cultura em Coimbra, merece(m) ter.
No início de Agosto, o regresso será de certeza vigoroso, pois o maravilhoso cheiro a mar fortalecerá de certeza a boca e o coração. Então...até já! Ah... e por fim deverá ver a luz do dia o novo livro, que se chamará "DIACRÍTICO". Xau!

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Agora que a noite é imaculada e não há cidade mais viva que tu, imagem voluptuosamente virgem na masmorra dos espelhos, tu, o ténue reflexo do ser que oscila entre sonhos insondáveis e a memória que perscruta os cantos da insónia, diz-me onde se fundeia a minha carne, diz-me quem és, com teus dentes calcinados de terra consagrada, com teus olhos de nervuras e palavras orvalhadas das quimeras dos homens que o vento dissipa ou a primavera fará germinar. A arquitectura do mundo em espaços de incandescência.
..................................................João Rasteiro
........................In, O Búzio de Istambul, 2008
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domingo, 11 de julho de 2010

ROTAS - "POESIA DO MUNDO 6"

Acaba de ser editado o volume POESIA do MUNDO 6 durante os VII Encontros Internacionais de Poetas de Coimbra, organizados pelo Grupo de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Nele, constam dois poemas meus, resultantes da minha participação em 2007, que possuem tradução de Graça Capinha.
Como consta do prefácio de Maria Irene Ramalho, com o título "A violência da poesia", Poesia do Mundo 6 reúne, como de costume em edição bilingue, poemas dos poetas que participaram no VI Encontro Internacional de Poetas, realizado em Maio de 2007 e subordinado ao tema geral, “Poesia e Violência”.
Um grande poeta alemão perguntou um dia: “Para quê poetas em tempo de indigência?” Dezoito anos depois de terem iniciado este belo e perigoso projecto de trazer a Coimbra, de três em três anos, poetas de todo o mundo, os organizadores do VI Encontro entenderam parafrasear Friedrich Hölderlin e perguntar-se: “Para quê poetas em tempo de violência?”
Vivemos em tempo de violência. Talvez nunca como hoje tivéssemos obrigação de ter consciência plena disso mesmo. Não passa um dia sem que a televisão nos violente a tranquilidade da nossa sala de estar com as mais cruéis imagens de opressão, discriminação e repressão. O objectivo do VI Encontro não foi, porém, reunir poetas que nos viessem ler ou representar poesia sobre a violência. O objectivo foi antes reflectir sobre o que se entende por violência e que relação tem com ela a poesia. Blake disse, com aquela violência que melhor que ninguém ele soube retirar da língua, que as “Prisões são construídas com as pedras da Lei, os Bordéis, com os tijolos da Religião”. O VI Encontro incluiu, nos 250 anos do nascimento do multifacetado poeta e artista, uma homenagem a William Blake, o poeta que em belíssimos cantares de inocência e experiência fez ecoar as brutais discrepâncias e a hipocrisia desenfreada da sociedade do seu tempo.
A pergunta que muitos dos poemas aqui coligidos suscitam é se a poesia poderá, ou deverá, representar a violência. Não será o acto de representar, só por si, uma violência? No que diz respeito à poesia lírica, o “silêncio dos poetas”, de que fala Alberto Pimenta, diz mais do que o dizível, e com muito mais força: “dizes: / é preciso distinguir o bem do mal / admites portanto que eles podem ser confundidos”. Em tempo de crescente menorização da poesia, das artes e da cultura humanística em geral, para quê ouvir os poetas e perguntar, como perguntou um dia o poeta de Coimbra, Vítor Matos e Sá: “o que pode dizer a poesia?” A poesia nada diz. A poesia diz-se – e, no seu dizer-se, interrompe e faz estremecer a razão e os sentidos. Por mais ineficaz que seja em última análise o seu impacto, a poesia faz tremer os poderes. No seu nada dizer, em seu “silêncio”, a poesia é a violência que mais precisamos nos interrompa e surpreenda hoje – para a nossa continuada construção de nós próprios como seres humanos responsáveis e solidários. Foi neste sentido a admirável conferência proferida por C. D. Wright na abertura da VI Encontro: “A poesia (. . .) aspira ao silêncio. Não digo que o seu alvo seja a perfeição, mas uma abertura (. . .) uma clareira (. . .) onde a língua se dê ao luxo de associações inesperadas e resultados alternativos”.
No VI Encontro, acolhemos poetas de quatro continentes: Europa, América, África e Ásia. Os poemas reunidos nesta antologia mostram bem por que razão disse Ruy Belo um dia que “a poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, qualquer ordem estabelecida”. Dos quatro cantos do mundo chega até Poesia do mundo 6, em imagens poderosas, uma pergunta desestabilizadora pelas múltiplas relações de poder, violência e colonialidade que continuam a entrelaçar as nossas vidas, seja na esfera cultural, social e política, seja na esfera pessoal. Há vaqueiros mexicanos empalados num poema do americano Forrest Gander; corvos marinhos surreais, que ocupam o espaço alheio, num poema do irlandês Macdara Woods; cadáveres de crianças num poema da libanesa de Montreal Nadine Ltaif. A angolana Chó do Guri diz-se poeta de gente enjaulada e a palestiniana Faiha Abdulhadi evoca as subtilezas das políticas de paz na sua terra, perguntando: “O que é mais cruel / os dentes do lobo ou / o sorriso da raposa?” Poemas há, como os do brasileiro Márcio-André ou, mais ainda, da inglesa Maggie O’Sullivan ou da americana Joan Retallack, que denunciam a violência da própria língua, completamente a desmantelando. Ao mesmo tempo, qualquer dos poemas aqui recolhidos, mesmo os mais fluidamente líricos da galega Helena Villar Janeiro, ou as meditações ônticas do português Gastão Cruz, é uma pergunta rigorosa pela tradição poética, em que não deixa de se reconhecer. Num dos seus poemas, o russo Maxim Amelin faz do fotógrafo ambulante, obsoleto em tempo de polaróides, um dos filhos de Febo Apolo. Que o pessoal é poético e político resulta uma vez mais claro nos poemas do chinês Xiao Kaiyu.
Mas não só a ordem poética é interrogada e reinventada; também os valores dominantes da cultura no seu todo são postos em causa. Para matar a fome ao mundo, a portuguesa Regina Guimarães imagina uma mulher (são as mulheres que dão o sustento), mas uma mulher que é a lenha que dará o fogo para cozinhar a refeição.
Pois não busca também a poesia, como sugere um poema do americano John Taggart, a arte de virar a melodia do avesso e tornar a tocar tocando uma e outra vez?
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With death, love too
....................for valter hugo mãe

One day the high flood of blood

will burn the night, books too

will lie alone under the tunics of Istanbul

with death, love too should

end - in a violent and unique secret.

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Melancholy will flutter from the vents

atoning for guilt, grey creatures

will be moved full in the heat of touch

will die alone - as their offspring.

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And there will be the celebration of precipices

warping the consent of the ivy, for the flower

is a body excessively fresh and mortal

he blood in spring is redder

than the naked clay - the earth is a folded lily.

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For love and death have their unique existence

hey are converts, but their monsters endure

and will endure sheltered in the agony of time

making love with wombs - until the end of the world.

..................................................João Rasteiro.

........................TRADUÇÃO: Graça Capinha

Com a morte, também o amor
.........................................Ao valter hugo mãe

Um dia o excelso dilúvio do sangue
queimará a noite, também os livros
jazerão sós sob as túnicas de Istambul,
com a morte, também o amor devia
acabar – num único e violento segredo.
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A melancolia esvoaçará dos orifícios
expiando a culpa, as criaturas cinzentas
comover-se-ão pelo calor do tacto,
perecerão sozinhas - como a sua progénie.
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E haverá a celebração dos precipícios
urdindo o beneplácito das heras, pois a flor
é um corpo excessivamente fresco e mortal,
o sangue, na primavera, é mais vermelho
que o barro nu – a terra é um lírio dobrado.
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Porque amor e morte têm existência própria
convertem-se, mas os seus monstros subsistem
e subsistirão recolhidos à agonia do tempo
amando-se pelo ventre - até ao fim do mundo.
..............................................João Rasteiro
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sábado, 3 de julho de 2010

Sábado

Vi o relâmpago disposto nas candeias
do sangue o caminho onde ardo na forja
com que as mãos tecem oiro a bordadura
das catedrais a memória solidificando-se
no lado vertiginoso da boca as vísceras
ungindo o granito dos dias ancestrais
murmúrios caindo na rua de los libreros
puro espaço em si o vazio e a plenitude
em que deus susteve o verbo a blasfémia
do poeta o gesto imperceptível da morte.
...........................................João Rasteiro
.....In, Salamanca ou a Memória do Monotauro