sábado, 27 de junho de 2009

Intemporalidades

1.
No íntimo do caos
o corpo flutua no infinito desigual
dos últimos milénios
às vezes troca de morada
e na casca trémula da pedra
ensaia uma fuga abstracta
em volta do seu corpo
um poder feminino
o misterioso feminino que dizem ser
uma pequena concha imortal.

2.
O corpo não descobre nada
encontra apenas um palco vazio
talvez o corpo não seja bastante
há máscaras que escondem outras máscaras
a arte do silêncio
todas as visões circundantes às pálpebras
encontram o caos
antes do paradoxo inesgotável do pó
a morte que se tece com o próprio corpo.
................................................João Rasteiro
In, "A Respiração das Vértebras - 2001
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.......................Michael Jackson - Black or White

quarta-feira, 24 de junho de 2009

LUGARES

...............................Ivan Shishkin (A chuva na floresta, 1891)

Arseny Tarkovsky (n. 25/06/1907 – m. 27/05/1989 ).
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Quando sob os pinheiros, e quando escrava,
minha alma vestia um corpo torturado,
ainda a terra voava célere para mim
e as aves se desvairavam ao som rouco dos cavalos,
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Agulhas negras, escamas dos pinheiros,
as cascas
e rubro sob os pés jorra
o mirtilo,
e meus furiosos dedos rasgam pálpebras,
meu corpo quer viver. Será que este
sou eu?
.
Serei eu de carbonizada boca procurandoos

joelhos das raízes secas, e que a terra
engole como outrora o sangue, e as irmãs
de Faetonte se transfiguram, choram âmbar?
.............................................Arseny Tarkovsky
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Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra
..................................O Lago dos Cisnes - Tchaikovsky

domingo, 21 de junho de 2009

LUGARES

Santa Cruz

Estou só sob a carnal mareação das pedras
plenas de inocência mineral
até à carnívora cortesia
onde os enigmas adquirem o clamor noctívago
da cidade altiva
em suas folhas de acanto.
...............É o corpo divino de um fecundo júbilo.


A forma como o eco regressa ideia de labareda
granítica memória
como a genuína dicção dos lábios
coincide com o discernimento dos cantos
levantados em seu arcanjo
estendendo a fluorescência acesa dos vitrais
o clarão aberto. Como os brancos arquipélagos
de uma geometria obstinada
santa cruz
toda a compaixão do verbo sobre o ímpeto
na respiração doída do mundo
o espaldar primitivo.
.........A minuciosa profusão das bocas expostas.


Ela encerra a sua própria concentração
de sonhos
toda a claridade no coração das cores da brancura
e o rosto de deus batido de luz rara
em olhos de oiro e azul celeste
por dentro da maturação da cidade das lágrimas
os seres que vivem junto ao rio
onde a indução do amor
celebrou o desígnio de um corpo que brota
de desejos de casta da flor de lótus
toda a punção da pedra acesa. E há uma magia de cores
afrontando o cordeiro, o sol e a lua.
.................Porque toda a morada é a própria alegoria.


O seu silêncio é a sílaba que respira os olhares
a distância dos remoinhos
que apaziguam a paixão do primordial ser – que dizem
ser a alma dos mortos em que os vivos
mergulham em sucessivas e maternais primaveras
brancas. O coração e o círculo dos deuses em sua cruz.
..........................................................João Rasteiro
.............................Clave de Fado - Igreja de Santa Cruz

http://pt.wikipedia.org/wiki/Caf%C3%A9_Santa_Cruz
http://www.cafesantacruz.com/

quarta-feira, 17 de junho de 2009

A festa da vida

No dia em que José Sócrates apontou como exemplo de um erro (erro grave, um daqueles que demonstram claramente a falta de visão para o futuro de um país) cometido pelo seu Governo nesta legislatura, a ausência de um investimento volumoso na área da cultura (as peripécias nos Teatros de São Carlos, Teatro Nacional D. Maria II ou Museu Nacional de Arte Antiga e agora a extinção vergonhosa de Belgais - independentemente dos erros de Maria João Pires, o seu maior terá sido não ter na década de 90 instalado "Belgais" em Inglaterra, após lhe ter sido solicitado tal projecto pelo príncipe Carlos), Portugal perde mais um dos poucos grandes nomes da cultura portuguesa. O maestro e compositor José Calvário morreu hoje, aos 58 anos, em Oeiras. Fernando Tordo considerou José Calvário "um músico de eleição, um grande talento, um grande orquestrador e excelente compositor", cujo desaparecimento é de "lamentar profundamente".
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HAIKU
Abri a passagem:
A terra chegou-me
até à garganta.
........João Rasteiro
In, O Búzio de Istambul
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.........."A festa da vida" - Carlos Mendes - Música: José Calvário

sábado, 13 de junho de 2009

O eleito do sol

O "Prémio Camões" 2009, o mais importante galardão literário em língua portuguesa, foi com alguma surpresa atribuído ao poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, quando talvez todos esperassem que na linha da frente da poesia Cabo Verdiana para um prémio com este significado pudesse estar talvez o poeta Corsino Fortes.
No entanto a distinção de Arménio Vieira, até poderá significar a total liberdade de escolha, análise e gosto pelos membros do júri do Prémio Camões. E além disso, quem é que tem verdadeira autoridade para determinar o que é a justiça na atribuição de um prémio?
Aos 68 anos Arménio Vieira, torna-se o primeiro cabo-verdiano a receber o Prémio Camões. O poeta nasceu na cidade da Praia, na Ilha de Santiago, Cabo Verde, em 24 de Janeiro de 1941. Além de escritor (poeta e ficcionista) é jornalista, com várias colaborações em publicações como o "Boletim de Cabo Verde", a revista "Vértice", de Coimbra, "Raízes", "Ponto & Vírgula", "Fragmentos" e "Sopinha de Alfabeto". Foi ainda redactor no jornal "Voz di Povo".
Arménio Vieira foi um elemento activo da chamada "Geração de 60", em permanente luta pela liberdade e dignidade do homem Cabo-Verdiano.
A atribuição do Prémio Camões a Arménio Vieira é o «reconhecimento da literatura e da visão literária importantíssima» do poeta cabo-verdiano, disse Helena Buescu, presidente do júri e professora da Faculdade de Letras de Lisboa. O poeta possui três das suas quatro obras publicadas em Portugal: «Poemas», de 1981, «O eleito do sol», 1990 e «No inferno», em 1999. Em baixo o poema "Ser Tigre":
Ser Tigre

O tigre ignora a liberdade do salto
é como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula
o tigre não ama.

Ele busca a fêmea
como quem procura comida.

Sem tempo na alma,
é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.
O tigre, já velho, dorme e passa.

Ele é esquivo,
não há mãos que o tomem.

Não soa,
porque não respira.

É menos que embrião
abaixo do ovo, infra-sémen.

Não tem forma,
é quase nada, parece morto.

Porém existe,
por isso espera.

Epopéia, canção de amor,
epigrama, ode moderna, epitáfio,
Ele será quando for tempo disso.
...................................Arménio Vieira
..........................................Tito Paris - Danca Ma Mi Criola

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quarta-feira, 10 de junho de 2009

Portugal, Portugal...!

Hoje, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas estarei em Alvaiázere, na Biblioteca Municipal de Alvaiázere, em representação da "Oficina de Poesia" da FLUC. A leitura integra-se no "Letras à Conversa" e irá decorrer pelas 19hoo. Todos os que puderem aparecer serão bem vindos.


Como um mausoléu
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Como um mausoléu enorme e sem ninguém
frágil é a revolução difusa das constelações
que abriram de corola em corola a madrugada
o sentido heróico e excelso da sílaba de oiro
um país inclinado sobre a lírica de Camões.
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A criança e os cravos, um sopro alucinado
no nevoeiro fatigado da espera dos pássaros
os que se foram nus com as primeiras chuvas
emigrantes de outros sonhos que o tempo urde
e há clarões no céu que nunca acendem a terra.
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Talvez ainda regresse o grande guerreiro da luz
o fogo e abril nos marejados olhos das gaivotas
e mulheres transformar-se-ão em pórticos de sal
a grande flor perfumada deleitando-se primavera,
não chegará seu tempo para enlouquecer o meu.
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Como um mausoléu geométrico e sublime dor
o golpe incide na língua que molha minha voz
ó soluço de palavras maternais e azul profundo
e se esta é ainda a ditosa pátria amada de Afonso
porque como uma concha está meu coração vazio?
.................................................João Rasteiro
........................................Portugal, Portugal - Jorge Palma

domingo, 7 de junho de 2009

O Amor e a Poesia

Faz hoje 719 anos (em 1290) que faleceu Beatrice Portinari, musa de Dante Alighieri. Mal sonharia a dama que iria representar para sempre uma das mais cantadas formas de amor na voz de um dos mais extraordinários poetas de todos os tempos. Ela foi a própria simbologia do amor, de um amor cristalino e divinal e por isso Dante exaltou Beatrice de uma forma cortês, escrevendo não poder compará-la com outra mulher, e por isso chama-a de beatitude nobilíssima, fazendo referência a algo puro e nobre que não se pode comparar. Beatrice e esse amor aparece como a justificativa da poesia e da própria vida, quase se confundindo com as paixões políticas, igualmente importantes para Dante Alighieri. É sob o signo desse amor que Dante deixará a sua excepcional marca distintiva no Dolce Stil Nuovo e em toda a poesia lírica italiana, vindo a abrir caminho aos poetas e escritores que se lhe seguiram para desenvolverem o tema do Amor (Amore) que, até então, não tinha sido cantado e enfatizado tão profundamente.
..................Dante e Beatriz, Marie Spartali Stillman (1844-1927)
[É TÃO GENTIL E TÃO HONESTO O AR]
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É tão gentil e tão honesto o ar
de minha Dama, quando alguém saúda,
que toda boca vai ficando muda
e os olhos não se afoitam de a fitar.
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Ela assim vai sentindo-se louvar
na piedosa humildade em que se escuda,
qual fosse um anjo que dos céus se muda
para uma prova dos milagres dar.
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Tão afável se mostra a quem a mira
que o olhar infunde ao coração dulçores
que só não sente quem jamais olhou-a.
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E quando fala, dos seus lábios voa
Uma aura suave, trescalando amores,
que dentro d'alma vai dizer: "Suspira!"
...........................DANTE ALIGHIERI
(Tradução: Augusto de Campos)

quarta-feira, 3 de junho de 2009

PAISAGENS

Os passos em volta

Aqui é a aldeia da boca mais ávida:
liberta o círculo da cabeça, o fulgor do amieiro,
diz adeus à maldição dos campos álgidos, nus,
com o fulgor de aguilhões sobre o poente
o lugar é uma epifania das vozes dos grandes ritos.
E o coração acolhe-as, acendendo archotes
nos dedos secretos da chuva. Cheguei.
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A aldeia pega nesse corpo tão sonhador
e projecta-o para o espaço da ternura.
Sou amado - e é um corpo divino e instável
que sob as trovoadas mastiga e sangra as próprias asas.
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Nada há como o afago das árvores simples
na gostosa e plena rasura das íntimas enxurradas.
...............................................João Rasteiro
In, O Búzio de Istambul, 2008
.........................................Alceu Valença
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