domingo, 8 de maio de 2011

Deuses e Poetas


                                                             Deus por deus
                                          Ao Eduardo Lourenço


1.
Mas o poeta, o alucinado e incandescente poeta,
revestido de sílabas – escassas
aparentando o tempo, uma breve autoridade,
poeta preso nas cidades vastas,
mostrando as suas habilidades perante a ânsia dos céus
dentro de muralhas
que devaneiam o diacrítico do mar,
o exacerbado poeta, ingenuamente concebe
o sussurro
das pétalas de rosa azul que nunca ninguém ousou criar
porque os deuses julgam-se imutáveis na luz
do espelho.
                                  
 2.
Os antigos trovadores
invocavam as musas sob as luas
Shakespeare, o pequeno e terno irmão de Deus
aquele imortal que viu a obra duplicar fantasmagoricamente
no oitavo dia da criação, rogava diariamente a seu irmão
ele, o poeta da cidade
o que amplia criação à realidade
à criação urbana, renovando o mundo em suas nuas leis
do circo urbano
a arena onde nos digladiamos no desejo
nós, os mais altivos e singulares leões de nós mesmos
invoca-se a si próprio, deus díspar da única criação
a obra aberta
da ironia da linguagem e da melancolia do verbo
mas como sei que não aparecerá nas rotações
do poema
em raro ensejo de lucidez irrompe os espaços e conceitos
deita fogo a todas as suas recentes
e geniais criações
de pétalas de rosas azuis e galáxias de cristalina garganta.

3.
Quando as muralhas
se abrirem ao mar e aos raios do sol
o poeta da cidade, não se invocará omnipotente em vão
e descansando entre divinos anjos
e animalescos humanos
contemplará a absoluta redenção do caos por si criado
e cantará a devastação das lágrimas da tristeza
e da alegria
onde floresce o dialecto assimétrico
das novas gramáticas
porque a purificação do caos é tão assombrosa
e excitante em seu centro de boca
como o paraíso primordial de onde nos julgámos expulsos
devido à linguagem arcaica
da única arca de Noé que encantadoramente sobreviveu.

4.
Hoje
o poeta da cidade emprega artifícios e não magia
tentando tornar visível a efémera ostentação de si mesmo
no manto doirado da poesia – esse trama
em que o mundo
se construiu – e repudiando Cavafis
quando este cantava
os acúleos bárbaros em seus lamentos – aquela gente era
uma solução – porque das guelras
um anzol trepava ao céu como viajante mitológico. 
                                                                   João Rasteiro

1 comentário:

Mar Arável disse...

Um belo desafio

para reflectir