sábado, 8 de novembro de 2008

"Ninguém escreve como eu"

Foi recentemente editado o último livro de António Lobo Antunes, "O Arquipélago da Insónia". Trata-se "apenas de mais uma" das obras extraordinárias, talvez de um dos três únicos ficcionistas portugueses (conjuntamente com Saramago e Agustina) merecedor de ganhar o Nobel da literatura na segunda metade do século XX. Em poesia ainda ouso sonhar com o Nobel para o Herberto. Como referiu Mário Santos no Jornal "O Público", é «Um livro magnífico e, ainda por cima, comovente. [...] o virtuosismo de uma escrita eficazmente inclinada para o fôlego e o rigor rítmicos da grande poesia.»
E é também por mais este livro e o seu encantamento, que se poderá dizer da busca literária de António Lobo Antunes o mesmo que J.M.G. Le Clézio (Nobel da Literatura de 2008) disse a propósito dessa espécie de poema assinado por Henri Michaux: «As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas sílabas, como um cego tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam. Talvez seja preciso abandonar tudo.» É um livro que nos sufoca e alimenta, porque como se diz no livro, "se uma pessoa não tem mortos não tem vivos também". E para completar de forma emblemática o post de hoje, um poema de António Lobo Antunes, até porque Portugal anda mesmo muito constipado: "A gripe e os homens..."
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Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisanas e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.
"O Arquipélago da Insónia" de António Lobo Antunes

2 comentários:

Gabriela Rocha Martins disse...

te gosto

quanto desgosto do António

e dele guardo
o duplo encontro

não da palavra
quando chego tarde
ao nada
e sorrio
ao vazio

de um outro nobel ... palhaço!


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um beijo ,Amigo

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Três grandes nomes da Literatura, não importa se só um recebeu o Nóbel, importa isso sim, que nos deixam obra no correr dos nossos dias ... Aprecio os três por motivos diversos, que não vêm aqui ao caso ...
O que eu gostei foi deste poema de António Lobo Antunes , a ressoar-me a Luísa sobe a calçada de Gedeão , e foi um prazer lê-lo...
abraço Joâo
_________ JRMarto