sábado, 5 de março de 2011

POETA=POESIA

Foi recentemente publicado na  Editora Escrituras de São Paulo, o livro A obra ao rubro de Herberto Helder,  da autoria de Maria Estela Guedes. O livro foi publicado na colecção “Ponte Velha”, onde têm sido publicados poetas e escritores portugueses, como António Ramos Rosa, Ana Hatherly, Pedro Tamen, Armando Silva Carvalho,  Luisa Neto Jorge, Fernando Guimarães, Casimiro de Brito, Maria Teresa Horta, Nuno Júdice, Rosa Alice Branco,  Fernando Echevarría, João Barrento, só para citar alguns, e na qual tenho o privilégio de brevemente publicar o meu livro: "Tríptico da Súplica". Refira-se que esta colecção é apoiada pelo Ministério da Cultura Portuguesa e pela Direcção-Geral do livro e das Bibliotecas.
Em A obra ao rubro de Herberto Hélder, Maria Estela Guedes analisa a poesia de Herberto por um prisma ainda não muito aceite e compreendido pelo cânone, principalmente universitário, pois baseia a sua análise, sobretudo, partindo do odor e da força bruta que emana dos artigos e crónicas que Herberto foi publicando em jornais e algumas revistas.
A obra ao rubro reúne ensaios, depoimentos e entrevistas datados de 1977 até o ano passado. Registra uma dedicação permanente ao autor deA faca não corta o fogo (o título de sua mais recente reunião de poemas). Comenta uns primeiros contatos com sua obra ainda na adolescência e reuniões surreais nos cafés lisboetas na década de 1960 (Claudio Willer).
No segmento do livro dedicado a algumas entrevistas, tive a surpresa e simultaneamente algum medo, mas uma enorme honra, em responder a algumas perguntas de Maria estela Guedes sobre Herberto.
São essas (temerosas) perguntas e respostas que integram o livro  A obra ao rubro de Herberto Helder , que se seguem em baixo.
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Maria Estela GuedesJoão, que impacto tem Herberto Helder na poesia actual?
João Rasteiro – O impacto de Herberto, mais do que profundo, é simplesmente aterrador. Principalmente a partir dos anos 80, embora desde o início dos anos 70, a poesia portuguesa de algum modo tenha começado a gravitar entre o magnetismo e a repulsa à poética Herbertiana, esta talvez mais por medo, o desconhecido é sempre explicado por deus ou deuses, só que Herberto para além de ser a sua própria criação e alimento é simultaneamente deus em sua sílaba de verbo. Aliás, tenho a certeza que mais tarde ou mais cedo, teremos uma edição de toda a poesia Herbertiana, que se chamará somente “Herberto Helder”. A sua obra impõe que se cale ou se esqueça o Herberto cidadão, uma vez que “ele” é o próprio poema.
É lógico que para muitos, nos quais me incluo, não é fácil escrever “depois de Herberto”, tal é a forma avassaladora, atómica, com que nos inunda as entranhas, possesso como um vírus genésico-demoníaco que nos sufoca e nos sustenta. E nem sequer a “angústia da influência”, tão explorada por Harold Bloom, se coloca em relação a Herberto, uma vez que não é possível imitá-lo, talvez beber umas gotas frescas da alquimia das “suas” palavras, já seja um grande sentido de representação. É que a quase divina imagética em seu poder visionário, o verbo transfigurador sob a autenticidade cósmica dos sentidos primitivos, em que o poema explode numa lava que alastra alma e matéria, coloca-nos na verdade perante uma gramática que provoca e acarreta um abalamento que é dos mais intrigantes e profundos que a poesia e até a literatura (não nos podemos esquecer desse extraordinário livro ou poema que é “Os Passos em Volta”) portuguesa já sofreu em seu espaço de silêncio. Por isso o impacto feroz e restaurador da sílaba.
Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração.
MEGDe onde vem a fascinação que exerce em nós?
JR – Naturalmente que a áurea que o mito de poeta obscuro e hermético de Herberto proporciona, quase como referi anteriormente, Herberto igual a poema, poema espelho de Helder, provoca num primeiro olhar uma atracção brutal, uma inclinação absoluta e implacável sobre o obscuro onde procuramos sempre o mórbido e simultaneamente o herói, a eterna atracção pelo desconhecido (e no entanto o Herberto cidadão, por vezes chega ao “estranhamento”, quando responde a cartas de jovens poetas, que apenas lhe escrevem, “pensando que não irão obter qualquer resposta”, confessando-lhe em substituição do padre cura, que admiram de forma grandiosa o(s) deus(es) - da linguagem). E esse “estranhamento” é ainda maior, quando na resposta diz:
Como deve supor, tenho mesmo aqui ao lado montes de coisas para ler, e coisas todas elas reclamando urgência. Como exclamava o outro: - “E eu que ainda não li todos os gregos”.
E já agora, o Herberto cidadão confessa ainda, tendo em conta a carta a que está a responder, algo que será novidade, a sua admiração pelo poeta norte-americano Robert Creeley. Talvez sejam exíguos momentos de manchas no corpus do poema, de lampejos ou ligeiros sopros no exterior como possível explicação do eu-poema.
Mas, a verdadeira fascinação que exerce em nós, nos poetas e nos artistas em geral, resulta de uma poética do maravilhoso que sustenta o corpo, o corpo carnal da linguagem. É uma poética onde o poema, aquele que Herberto começou a escrever nos anos 50 e que como um vulcão se vai transcendendo num só tempo para a absoluta linha de violência, onde os contrários se expandem e anulam. Porque o cosmos onde este corpo-corpus de linguagem é um processo inexequível, perverso e pecaminoso, uma vez que consiste naquilo, eco versus silêncio, que potencia a alquimia do verbo que estando no mundo, escapa às leis da natureza, às leis da linguagem. E Herberto, substitui-se a essas leis, tentando enquanto a respiração lhe permitir, metamorfosear-se de forma ininterrupta poema, metamorfosear a língua, desfigurando-a e mastigando-a, desfigurando-a e vomitando-a. Uma língua dentro da própria língua, um poema dentro do próprio poema. É este trabalho de uma vida, este poder encantatório em seu fluxo verbal, em que o poeta-poema se aniquila e nos aniquila, num processo antropofágico que nos seduz e subjuga, porque ele e nós somos o poema, um só poema, o mundo, um só mundo em seu eterno processo de criação, o sopro “até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza”, a vida que brota violenta e retemperadora da voz da morte.
E ele morre e passa de um dia para outro.
Inspira os dias, leva os dias
para o meio da eternidade, e Deus ajuda
a amarga beleza desses dias.
Até que Deus é destruído pelo extremo exercício

da beleza
Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.

                                                                            J.R.


http://triplov.com/willer/2011/herberto_helder/index.htm
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http://www.escrituras.com.br/ponte.htm

3 comentários:

Anónimo disse...

João, Herberto é de facto um grande poeta, um dos maiores, mas a adoração e mitificação que se tem vindo a construir à sua volta em Portugal e também no Brasil, não a consigo compreender. Tal mitificação não era possível em países como a França, nem como a Alemanha, Suécia etc. acho que é um fenómeno bem português. Quando é que aprendemos a ver que há outras grandes vozes poéticas em Portugal ( por exemplo uma maravilhosa geraçao de poetas nascidos entre os anos 20 e 40 ) que estão bem à altura do Helder?
Lembro aqui, ainda, entre muitos outros, só 7 que nada ficam a dever ao Helder: António Ramos Rosa,Ruy Belo, Al Berto, Fiama Hasse Pais Brandão, Ana Hatherley para não falar de outros mais novos, como por exemplo: Nava, ou ainda mais jovem, o Daniel Faria.
Também a França teve um Saint Jonh Perse, também a Espanha teve um Aleixandre (linguagens poéticas bem próximas de Helder (penso até que ele os terá lido e interessante seria alguém fazer um estudo comparativo entre o Perse e o Helder), também a Áustria teve um Rilke e nesses países, também houve e há admiração, mas nunca uma mitificação de tais poetas como acontece hoje em Portugal com o Helder.
Por vezes, quando ouço e leio certas conversas, parece-me que Portugal só teve , depois de Camoes, dois poetas: Pessoa ( neste caso até compreendo uma certa mitificação, pois Pessoa esteve muito acima dos seus contemporâneos) e o Helder.
Há uns dias atrás alguém dizia que Helder era o príncipe dos poetas. Lá terá a sua razão. Ora, a meu ver, Helder é de facto uma grande voz, uma voz rara, mas também uma voz entre outras grandes vozes da poesia portuguesa.

Um abraço firme.

Luís

João Rasteiro disse...

Luís, há de facto uma desmesurada adoração e mitificação do Herberto Helder (e eu, sem pudor, incluo-me nessa massa), agora, a alastrar ao Brasil, e não só. E se é verdade que poetas como A. Ramos Rosa, Ruy Belo, Jorge de Sena, Fiama, Sofia, ou até Al Berto (embora com uma obra, algo desequilibrada), penso que nenhum deles, para o bem e para o mal, têm uma obra que crie tanta perturbação (e essa perturbação, que não é/vai para todos, no mesmo sentido, faz da poética de herberto, o grande corpus poético pós Pessoa. Exagero, talvez, só o tempo o dirá. Ah, claro, a sua vida (ou anti-vida) pública, naturalmente que também ajuda um pouco no acrescento dessa áurea!
E como diz herberto: "(...)não chamem logo as funerárias,
cortem-me as veias dos pulsos pra que me saibam bem morto,
medo? só que o sangue vibre ainda na garganta
e qualquer mão e meia me encha de terra a boca,
sei de quem se tenha erguido, de pura respiração, do fundo da madeira,
saibro, roupa, gôtas de orvalho ou cêra,
ornatos, espadanas, lágrimas,
últimas músicas,
não é como no escuro o trigo que ressuscita,
sei sim de quem despedaçou as tábuas e ficou entre caos e nada com o
sangue alvoroçado nos braços e nas têmporas,
que se não pare nunca entre as matérias intransponíveis,
cortem-me cerce o sangue fresco,
que a terra me não côma vivo(...)".
Um grande abraço de Coimbra - (Já respondido no facebook).

Gabriela Rocha Martins disse...

a excelência em sol maior
( com exagero ou não .pouco interessa! )


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um beijo
( a todos )